Coração Devorado XVI
– A Mãe e o Cadáver Errante –
Por sete vezes a cabeça do cadáver errante bateu contra a porta trancada. Dentes enegrecidos raspavam o verniz e o sangue podre tingia a madeira. Lágrimas azedas cobriam sua sórdida face. Entre grunhidos de timbre bizarro gritava: “mamã”.
Do outro lado da porta a mãe chorava seu delicado menino, agora esquelético e imundo cadáver. Rugas de dor lhe mancham a face, qual papel amassado pela mais angustiada mão. A mãe entreabre a porta, por onde penetra a nervosa mão do cadáver, garreando violentamente o vazio.
Ela leva a mão ao decote, rasga a pele entre os seios, penetra a carne. Com a ponta da unha retira uma lasca do coração e coloca na mão do cadáver, que finalmente se acalma.
O cadáver errante se afasta arrastando os pés. Na rua mais suja ele incendeia a lasca do coração, no tosco cachimbo onde mergulha a face. Sacia assim a sua gula infame.
A mãe esgravata a fenda em seu peito. Procura o coração que se perdeu. Nada encontra, nem encontrará. Aquela foi a última migalha. Ela sorri aliviada – não lhe resta mais nada. Da próxima vez que o filho vier, ela poderá finalmente dizer-lhe “Não!”.

Caplan Neves
Caplan Neves escreve o primeiro poema aos nove anos e, dado ser o mais jovem concorrente, será premiado em concurso promovido pelo programa “Musica e Poesia” da RNC. É assim para a rádio que começa a escrever e publicar regularmente os primeiros poemas que alimentarão o idílio infantil de ser escritor. Psicólogo Clínico e da Saúde, com Acreditação em Psicologia Forense, foi Aluno do XIII curso de iniciação Teatral – Centro Cultural Português do Mindelo, Instituto Camões e co-fundador do Grupo de Teatro do Centro Cultural do Mindelo, no contexto dos quais iniciou o seu trajeto enquanto dramaturgo e agente teatral. Desde de 2008 esteve envolvido em diversos projetos ligados ao teatro, com obras apresentadas em festivais de teatro em Angola, Brasil, Cabo Verde e Portugal enquanto dramaturgo, músico, ator, encenador.