O nosso estado mental “alterou-se” com esta pandemia. O equilíbrio já não é o mesmo. Pode até falar-se em desequilíbrio. Por isso, caiam as aspas no alterou-se. A permanente sensação de se estar à beira do abismo e a permanente vertigem mudaram a nossa forma de ser e estar. Desafiamos os que se arvoram em plena sanidade mental a atirarem a primeira pedra. Antes, era o confinamento, agora a ronda pública. Com máscara para que não se arquive a nossa identificação facial e luvas para evitarmos deixar as impressões digitais. Esse 5G como tecnologia kafkiana…altera a sucessão dos dias e das noites.

*

Altera a poesia. Altera o spleen. O poeta, tornado prosador – pois nem tudo é verso, como nem tudo se veste no prêt-à-porter -, vai à janela. Há traços que passam a régua e ultrapassam a regra. Uns dias para se estar ao sol, outros dias para se banhar da lua. Em verdade, cartesiano estruturar-se: sol quando faz dia; lua quando faz noite. E, quando baralha de tudo, poesia. Prosar em poesia é como navegar o mundo todo. Só em reclusão fazemos as nossas aventuras de Ulisses. Só confinados somos Ptolomeu e seu Almagesto. Saídos da cripta, somos extravagância; postos na rua, somos errância dos expulsos do Paraíso. Somos geocêntricos, navegantes, malucos.

*

O mais das vezes é assaltar-nos o instinto assassino. Irmos ao alto da torre, como um sniper americano, e pormo-nos a disparar. O tiro ao alvo indiscriminado e a multidão em pânico. Acreditamos estar a acontecer com a canalha a pastar. Palavra por palavra. Frase por frase. Com ou sem metáfora, somos uma aleatória vítima da poesia. E o poeta, cujo estado mental não se recomenda, se acha alvejante da vida e da morte.

*

Saímos, tal como no quadro de Rembrandt, para a Ronda Noturna. Ronda soturna, taciturna, ora mortal, ora vital. Perscrutamos, muro a muro, os grafites, as sinaléticas e os poemas. A arte pública, por exposta que esteja, é íntima. Intimista. Fala as coisas que só os leitores em ronda precisam saber. Como na intencionalidade de um poema que convoca com flores e borboletas. No ritual que convoca a invenção do amor.

*

O problema dos pássaros no poema (como no desenho) é que uns cantam, outros não. É o mesmo problema das pessoas – umas desencantam mais que outras. Mas há lugar para todos, que a criação, não sendo infinita, é ubíqua. Está para além da mão. Às vezes, na contramão. Há uma música qualquer no vão das coisas. A música inaudível das coisas impercetíveis. Um entardecer qualquer que nos entristece sobre o mar. Um spleen. E o poema, aquele que se quer neste tempo de alma amarfanhada, o poema dá por fim a missão do atirador letal. Um drone, menor que um haicai, menor mesmo que um micro-poema, dá-lhe cabo do canastro. E essa coisa oblíqua, do nosso estado mental alterado, solta-se em gargalhada…Disto, já não avançamos mais nada!

Filinto Elísio

Filinto Elísio de Aguiar Cardoso Correia e Silva nasceu em 24 de janeiro de 1961, na Praia, ilha de Santiago. Dos livros publicados, alistam-se os seguintes títulos: Do lado de cá da rosa (Poesia), editado pelo Instituto Cabo-verdiano do Livro; Prato do dia (Crónicas), editado pela Visão News; O inferno do riso (Poesia), editado pela Biblioteca Nacional; Das hespérides (Miscelânea de Poesia, Prosa e Fotografias), editado pela Universal Frontier; Das frutas serenadas (Poesia), editado pela Biblioteca Nacional; Li cores e Ad vinhos (Poesia), editado por Letras Várias; Outros sais da beira mar (Romance), editado por Letras Várias; Me_Xendo no baú. Vasculhando o U (Poesia e Pintura), editado por Letras Várias; Zen Limites (Poesia), editado pela Rosa de Porcelana. É coeditor da Rosa de Porcelana Editora e idealizador do Festival de Literatura-Mundo do Sal.

#000