“QUARTO DE DESPEJO”, A INFLUÊNCIA DE LÍNGUAS BANTU E O PRECONCEITO LINGUÍSTICO NO BRASIL
“QUARTO DE DESPEJO”, BANTU LANGUAGES INFLUENCE AND LANGUAGE PREJUDICE IN BRAZIL
Jaqueline CÔELHO (IFB/ UnB)1
Tiganá SANTANA (UFBA)2
RESUMO: A influência de línguas bantu constitutivas da nação angolana, como o kikongo e o kimbundu, no chamado “português popular africano”, em muitos aspectos, no que tange à morfossintaxe e à fonética, pode ser comparada ao que ocorre no Brasil. De modo geral, o discurso se apresenta como parte da atividade social de uma prática e não estranhamente, correspondências linguísticas entre o português brasileiro e as línguas bantu tornam seus falantes alvo de preconceitos linguísticos. Este trabalho objetiva analisar a influência bantu naquilo que Gonzalez (1984) cunhou como “pretoguês” na obra Quarto de Despejo: diário de uma favelada, de Carolina de Jesus. O livro autobiográfico, lançado, originalmente, em 1960, e marcado por traços de oralidade, narra a vida da autora na favela do Canindé. A análise proposta recorre aos pressupostos da Análise de Discurso Crítica para identificar a prática social mais ampla que marginaliza e desumaniza os falantes do “pretoguês”, sintetizados na figura de Carolina. No nível social mais amplo, preconceitos vividos por Carolina de Jesus e a sua escrevivência revelam as relações de poder às quais a autora e os segmentos sociais que ela representa são submetidos.
PALAVRAS-CHAVE: Línguas Bantu. Pretoguês. Quarto de Despejo. Preconceito Linguístico.
Línguas bantu no Brasil
Antes da classificação geral das línguas africanas de Joseph Greenberg, que passou a ser, de fato, a mais adotada entre linguistas, no que diz respeito, especificamente, aos bantu, observemos que, no século XVII, “época em que surgem as primeiras gramáticas e dicionários de línguas africanas” (GREENBERG, 1982, p.308), também, “vários pesquisadores portugueses observaram a semelhança entre as línguas de Moçambique, na costa oriental da África, e as de Angola e do Congo, a oeste, prenunciando assim o conceito de uma família de línguas bantu (…)” (GREENBERG, 1982, p.308). A título de breve informação sobre o que estamos a tratar aqui, a classificação geral de línguas africanas divide-se em quatro grandes famílias, com suas respectivas ramificações e subgrupos, segundo Greenberg (1982): 1. Níger-Kordofaniana (Níger-Congo e Kordofaniana); 2. Afro-Asiática; 3. Khoisan (Clique); 4. Nilo-Saariana (Songhai, Saariana [Saariano Central], Maban, Fur, Koman, Chari-Nilo [Macro-Sudanês], Temainiano e Nyangiya). As línguas bantu, compreendem, segundo destaca Dalby (1982): “(…) a única região do continente a ter constituído objeto de discussões importantes a respeito da interpretação pré-histórica de dados lingüísticos” (p. 331). O desenvolvimento dos bantu remonta a prováveis cinco mil anos passados, segundo nos confirma Nurse e Philippson (2014) em “As Línguas Bantu” — tradução nossa para o título original The Bantu Languages. De acordo com Castro (2001), remetendo-se ao “protobanto”, o conjunto de línguas bantu propriamente seria falado há três ou quatro mil anos:
O termo banto (“bantu”, os homens, plural de “muntu”) foi proposto por W.Bleek, em 1862, na primeira gramática comparativa do banto, para nomear a família lingüística que descobrira, composta de várias línguas oriundas de um tronco comum, o protobanto, falado há três ou quatro milênios atrás. Só mais tarde é que o termo passou a ser usado pelos estudiosos de outras áreas para denominar 190.000.000 de indivíduos que habitam territórios compreendidos em toda a extensão abaixo da linha do equador, correspondente a uma área de 9.000.000 km2. Seus territórios englobam países da África Central, Oriental e Meridional: República Centro-Africana, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, Angola, Namíbia, República Popular do Congo (Congo-Brazzaville), República Democrática do Congo (RDC ou Congo-Kinshasa), Zâmbia, Burundi, Ruanda, Uganda, Quênia, Malaui, Zimbábue, Botsuana, Lezoto, Moçambique, África do Sul. (CASTRO, 2001, p.25).
Se a classificação das línguas africanas de Greenberg é a mais aceita entre os(as) estudiosos(as), a classificação das línguas bantu mais utilizada é a de Guthrie, que se alicerça “na existência de traços lingüísticos comuns e da proximidade geográfica” (CASTRO, 2001, p.29).
O linguista moçambicano Armindo Ngunga defende que: “Actualmente, o termo ‘bantu’ é usado nos estudos da linguística moderna para se referir a um grupo de cerca de 600 línguas faladas por mais de 220 milhões de pessoas numa vasta região da África contemporânea (…)” (NGUNGA, 2014, p.35).
A compreensão das línguas bantu neste trabalho justifica-se pela presença histórico-cultural vultosa de egressos(as) de civilizações bantu no Brasil; isto é, após o chamado Ciclo da Guiné, no século XVI, a prática escravocrata passou a sequestrar, em ainda maior quantidade, diretamente, pessoas de origem bantu (Ciclo de Angola – século XVII) e mesmo ao longo dos outros ciclos de tráfico (Benim e Daomé – séculos XVIII e XIX – e tráfico ilegal) não se interrompeu, com maior ou menor contingente, o sequestro de homens e mulheres de tal origem. O fato é que povos bantu tiveram presença maciça em todas as regiões do Brasil, do século XVI ao século XIX, bem como nas principais atividades econômicas realizadas no país, inicialmente na agricultura, mas também na mineração e nos serviços urbanos. Segundo Faraco (2019), “os escravizados estiveram presentes, portanto, em cada instituição que compunha a sociedade colonial e pós-colonial do Brasil.”
De acordo com Castro (2001), o aprendizado do português europeu trazia certa inserção na sociedade colonial aos escravizados bilíngues, os ladinos – aqueles que, com noções de português, “podiam participar de duas comunidades sócio-linguisticamente diferenciadas”. (CASTRO, 2001, p.4). Em complemento ao que destaca Yeda Pessoa de Castro, segundo Lobo e Oliveira (2009, p.13):
são justamente argumentos extraídos de dados de demografia histórica – aliados a outros extraídos de dados de mobilidade geográfica e social e dados da história da escolarização – que passarão a embasar a tese de que africanos e afro-descendentes não apenas foram os principais difusores da língua portuguesa no Brasil, mas foram também os formatadores da sua variante social majoritária, o chamado português popular brasileiro. Ou seja, a larga predominância de africanos e seus descendentes no conjunto da população do Brasil colonial e pós-colonial, a presença constante de escravos nas grandes frentes de economia da Colônia, a mobilidade geográfica dos escravos em decorrência da vida econômica de seus senhores e da economia brasileira e os inúmeros e multifacetados papéis pelos escravos desempenhados, tanto nos centros urbanos, como rurais do país, esses seriam os fatores responsáveis pela generalizada difusão do português popular brasileiro; quanto à sua particular formatação, teria decorrido do fato de esse contingente de africanos e afro-descendentes ter adquirido o português em condições imperfeitas.
Por outro lado, vale retomar a reflexão de Faraco (2019):
Postos em contato num mesmo espaço, falantes de línguas muito diversas tendem a abandoná-las, buscando construir condições de interação por sobre o multilinguismo. A diversidade acaba por favorecer, nesse sentido, uma relativa uniformização. E isso pode ter ocorrido com africanos no Brasil: foram levados, por exemplo, a adotar uma ou outra língua africana que, como o quimbundo, podia funcionar como língua franca entre falantes de línguas aparentadas ou de línguas isoladas.
Os estudiosos costumam apontar duas publicações como indício dessa situação: primeiro, a Arte da língua de Angola, escrita no Brasil, em Salvador, pelo padre jesuíta Pedro Dias e publicada em Lisboa, em 1697. É uma gramática do quimbundo, língua do grupo banto falada em Salvador pelos escravizados oriundos de Angola. Destinava-se a facilitar o aprendizado dessa língua pelos jesuítas que lidavam com esse segmento da população. Esse documento deixa claro que, no século XVII, na Bahia, onde se concentrava a maior população negra da época, era africana a língua que utilizavam os negros escravizados.
Além desse texto, há o trabalho de Antônio da Costa Peixoto, redigido em Ouro Preto em 1731 (com nova versão em 1741), sobre a “língua geral de mina”. O manuscrito apresenta uma lista de vocábulos em língua africana da costa do Benin, com tradução para o português e alguns diálogos e frases necessárias à comunicação mais urgente. O objetivo era facilitar aos senhores de escravizados o aprendizado da língua que se acredita era corrente na região aurífera.
Mesmo essas línguas francas foram, porém, progressivamente, abandonadas em favor do português. No entanto, ainda na primeira metade do século XIX (período em que continuou a entrar no país um grande contingente de africanos escravizados, talvez o período mais intenso do tráfico, apesar de sua proibição por lei de 1830), há indícios de que muitos escravizados, em especial os urbanos, eram bilíngues em diferentes graus. (FARACO, 2019, p.145).
É relevante, a partir das perspectivas supracitadas, pensar que a difusão do português no e do Brasil, nas chamadas “variedades populares” (FARACO, 2019), dá-se com base em línguas-linguagem africanas experienciadas, ancestralmente, e depois de modo fragmentado, por negros e negras presentes no território brasileiro. Tais línguas-linguagem, por serem representações de cosmovisões, inscrevem-se, coletivamente, nos corpos que estabelecem as diversas dimensões de comunicação. Como a maior quantidade de pessoas negras é de origem bantu, conforme vimos, por que não pensar numa influência estrutural bantu no léxico corrente no Brasil?
Aliás, escrevemos o presente artigo, também, em resposta a uma amarga intervenção quando do XXII Congresso de Humanidades, à Universidade de Brasília, em que uma pesquisadora de origem europeia, entre outras afirmações, refutou bruscamente a possibilidade de uma presença constitutiva e estruturante de línguas bantu no português brasileiro, atribuindo a situações universais (algo a que muitos europeus e euro-descendentes, comumente, recorrem por pendores de pensamento) algumas ocorrências linguísticas importantes que poderíamos situar nos séculos de travessias e presentificação de pessoas bantu na formação do que se pode chamar de sociedade brasileira. Não raro encontramos argumentações em favor de hegemonias que o são de modo integral, sem frestas ou outras participações periféricas relevantes à revelia da centralidade do que se faz hegemônico (por força, subjugação e inorganicidade que se oficializam). Ainda se trata de um olhar, cruelmente, etnocêntrico sentir como arriscada a localização em civilizações negro-africanas e afro-transatlânticas estruturações de línguas, pensamentos filosóficos e científicos, por exemplo, se se faz presente o contato colonial europeu. Este trabalho é, portanto, uma resposta, uma vez que o pouco tempo não permitiu uma réplica das colocações tendenciosas da pesquisadora, apoiada na sua autoridade, o que representou o silenciamento de pesquisadores negros apoiados em pensares negros.
A estigmatização do “pretoguês”
Apesar de falar português como segunda língua ou como língua materna, para o caso de negros nascidos no Brasil, a proibição do acesso à escola, ou seja, ao ensino da língua escrita, e a variação à forma de falar das elites estigmatizaram as pessoas negras como não capazes de utilizar o português com propriedade, estimulando a subalternização a partir do português hegemônico ensinado nas escolas e a inferiorização dos modos de falar dos negros que foram marginalizados em relação a uma normatização da Língua Portuguesa, e, a posteriori, em relação a uma ideia de língua oficial, ainda que tenham sido principalmente os negros os responsáveis por marcar as diferenças entre o português brasileiro e o português lusitano. Ao reconhecer e reverenciar essa influência negra, escolhemos adotar neste trabalho a expressão “pretoguês”, recuperada pela pesquisadora e ativista Lélia Gonzalez (1984). A mudança linguística revela-se no plano da fala, e é um desafio aos historiadores da língua reconstituir a história da transformação das línguas por meio de textos escritos que tendem a não revelar as variações presentes na língua oral. Um empecilho maior é encontrado na tentativa de reconstrução histórica do português popular brasileiro, devido ao
problema de se localizar, para o passado, textos escritos por indivíduos pouco letrados, pertencentes a estratos sociais subalternos e, mais centralmente, coloca-se – ou se colocava – o tão proclamado problema da inexistência de textos escritos por africanos e afro-descendentes durante o período da escravidão. (LOBO; OLIVEIRA, 2009, p. 14)
O termo “culto”, usado para designar as variedades sociais tipicamente faladas por populações urbanas e letradas em contraposição ao “popular” usado para designar populações rurais ou urbanas de classes menos favorecidas é bastante problemático. Entendemos aqui cultura como conjunto de práticas e produtos que constituem o modo de vida de cada grupo humano. E, assim, não há sociedade humana sem cultura (FARACO, 2019), o que faz de todos os grupos humanos cultos. Contudo, a língua portuguesa polarizada se converteu no Brasil numa marca distintiva de grupos sociais. Falantes da variante do português brasileiro entendida como popular são alvos de arraigado desprezo pelos falantes do português dito culto.
A escrevivência do Quarto de Despejo
Carolina Maria de Jesus, autora de, entre outras obras, “Quarto de Despejo: O diário de uma favelada”, livro publicado com uma tiragem inicial de dez mil exemplares que se esgotou em apenas uma semana, e que já foi traduzido para mais de treze idiomas desde o seu lançamento, foi uma mulher proveniente de camada social desprivilegiada e costumeiramente deslegitimada por escrever e falar “pretoguês”. Seu livro descreve as vivências da autora no período de 1955 a 1960 na favela do Canindé, em São Paulo, e se coloca como material de denúncia das inúmeras opressões que a autora e outras pessoas em situações parecidas de vulnerabilidade social enfrenta(va)m. Podemos entender o recurso metodológico de escrita utilizado por Carolina Maria de Jesus como “escrevivência”, conforme cunhado, décadas depois, pela escritora Conceição Evaristo, recurso que se utiliza da experiência da autora para viabilizar narrativas da experiência de um eu coletivo como forma de resistência (SOARES & MACHADO, 2017), escreveu Carolina Maria de Jesus, ratificando a perspectiva concebida por Conceição Evaristo: “Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem manifesta o que sofre é só eu” (JESUS, p. 36, 2018).
Carolina Maria de Jesus, apesar da grandeza de sua obra, foi e é exotizada enquanto escritora. É comum a reiteração de suas identidades sociais na justificativa da sua leitura. As expressões com valores adjetivos “negra”, “pobre”, “favelada”, “com apenas dois anos de escolaridade”, “catadora de papel” são traços marcantes comumente utilizados para apresentar a autora e apontados como superiores à força da sua escrevivência, pois causa estranhamento no pensamento hegemônico que uma mulher com suas credenciais seja capaz de produzir uma obra de grande valor literário. Não surpreendentemente, quando da publicação do livro, a autoria foi reiteradamente questionada, acreditando tratar-se de um golpe midiático para a sua venda. O prefácio do livro “Quarto de Despejo: o diário de uma favelada” foi escrito por Audálio Dantas, jornalista conhecido como o “descobridor” da autora (difícil não o associar ao personagem europeu, romantizado na figura de herói que “descobriu” a terra já habitada por milhares de anos por diversas e complexas etnias indígenas, e superior a essas e às negras trazidas de África, submetendo-as a um dos maiores genocídios vividos no planeta). O jornalista explicita no referido prefácio do livro sua decisão de alteração na pontuação e em algumas palavras “cuja grafia poderia levar à incompreensão da leitura”, além de cortes de passagens no texto, a fim de se evitar repetições “exaustivas”.
Análise discursiva do prefácio do jornalista
As alterações textuais de Audálio não são o foco de nossa análise mais direta, visto que a revisão textual responsável constitui importante procedimento de edição bibliográfica, no sentido de aprimorar a estética do discurso do livro a ser publicado. Contudo, importante sublinhar, não é comum que os revisores de obras publicadas ressaltem nestas a importância de seu trabalho para a compreensão do texto. A partir da percepção da incongruência da escrita do jornalista no prefácio, decidimos que seria importante levar em consideração a complementação de outra abordagem linguística para as contribuições contextuais e discursivas quanto à elaboração deste trabalho. Deste modo, recorremos aos pressupostos da Análise de Discurso Crítica, abordagem científica transdisciplinar que estuda a linguagem como prática social, entendendo o discurso como um momento dessa prática e das relações de disputas de poder. Com efeito, a fim de compreender as relações discursivas presentes na introdução do livro de Carolina Maria de Jesus, escrita por Audálio Dantas, e como elas revelam concepções hegemônicas a respeito dos falantes do “pretoguês”, apoiamo-nos também na Gramática Sistêmico-Funcional (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2004) que entende que o falante, por meio de suas escolhas no processo de fala, representa a sua experiência de mundo, e nos estudos sobre Atores Sociais, por meio da criação do quadro que se segue:
Tabela 1 – Atores sociais no prefácio de Quarto de Despejo

Para melhor compreensão, construímos o quadro acima levando em conta os três atores sociais mais presentes no texto: o próprio Audálio Dantas, Carolina Maria de Jesus e o livro “Quarto de Despejo”. De forma resumida, a fim de cumprir com o espaço destinado a este artigo, ressaltamos a forma como cada um desses atores é exibido. A Representação de Atores sociais é uma teoria dentro dos estudos críticos do discurso, que tem por objetivo investigar os modos pelos quais atores podem ser concebidos em textos, “representações de práticas sociais são particulares, ou seja, construídas por pessoas particulares a partir de determinados pontos de vista, e, por isso, representam atores envolvidos nas práticas de diferentes maneiras” (VIEIRA;RESENDE, 2016, p. 151). Por essa razão, verifica-se que as representações podem ter implicações ideológicas. As categorias propostas por Van Leeuwen incidem majoritariamente em categorias sociológicas. É possível perceber que Audálio apresenta-se em seu texto como ator social por meio de funcionalização, ou seja, pela sua profissão, e experenciador de processos mentais, expressando experiências cognitivas, pois tem “certeza”, “acredita”, “busca” e é realizador de processos materiais, capazes de transformar mudanças no fluxo dos eventos, neste caso, a obra de Carolina.
Carolina, por sua vez é colocada em situação desumana e apresentada como “artigo de consumo”, “bicho estranho”, “patética Cinderela saída do borralho do lixo”, nunca como realizadora de processos materiais, por outro lado, apassivada em várias sentenças. Apesar de estar sempre ligada à condição subalterna que a reduz, a última ocorrência do texto a apresenta como “alçadaà condição de cidadã” depois da publicação do livro. Apesar do grande sucesso com a publicação, as aparições de Carolina deixaram de acontecer em menos de dois anos. Logo que deixara de ser novidade, a autora enfrentou obstáculos para a publicação de outras obras literárias e musicais, e chegou a ter sido expulsa do bairro de classe média para o qual havia se mudado, Santana, por “incompatibilidade” com o estilo de vida da vizinhança, passando, então, os próximos anos de sua vida isolada em uma chácara na região de Parelheiros, extremo sul de São Paulo, vivendo da autossubsistência.
A obra “Quarto de Despejo” é outro ator social presente no discurso do prefácio escrito por Audálio. Por sua vez, a obra recebe elogios, comumente colocados em contraste à representação de sua autora. Apassivado reiterada vezes, o livro é beneficiário de orações realizadas pelo “tempo”, pelos “jornais” e “por alguns dos melhores autores brasileiros”. Deixando transparecer que a grandiosidade da obra envolve acasos e “descobrimentos” no lugar do trabalho de sua escritora, não colocada em pé de igualdade com os “alguns dos melhores autores brasileiros” referenciados pelo jornalista. Essa breve análise contribui para entendermos o quadro social mais amplo que inferioriza e marginaliza os falares e práticas linguísticas afro-brasileiras, ou melhor, o “pretoguês”.
Presenças bantu no Quarto de Despejo
Possuidora de marcadores de oralidade, a obra também é rica em demonstrar variações correntes no uso da língua popular brasileira de sua época. Quanto a influência das línguas africanas no português brasileiro, a escolha de “Quarto de Despejo” é justificada aqui principalmente por ser um texto em que transparecem as marcas de oralidade de uma mulher que se enquadra na variedade linguística estigmatizada pela variedade com poder hegemônico. Retomamos aqui, uma análise dessa influência presente na 10ª edição do livro que, apesar de relatado no prefácio ter sofrido alterações, possui uma nota dos editores afirmando que “respeita fielmente a linguagem da autora, que muitas vezes contraria a gramática, incluindo a grafia e a acentuação das palavras, mas que por isso mesmo traduz com realismo a forma de o povo enxergar e expressar seu mundo”. A nota dos editores vai ao encontro de uma linguística social e crítica e, devido a esse respeito à linguagem da autora, foi permitido traçar exemplos da influência das línguas africanas, notadamente bantu, e, fazendo coro à nota, reforçarmos que esses traços, apesar de mais recorrentes em alguns recortes sociais, não é apenas a língua de um grupo de falantes, mas é a transparência desse “pretoguês” (Gonzalez, 1984) constituidor da língua brasileira. Ademais, no caso da autora Carolina Maria de Jesus, identifica-se a sua ligação basilar, por meio do seu avô, ex-escravizado, com a cultura bantu de Cabinda, província de Angola.
A influência de línguas bantu constitutivas da nação angolana, como o kikongo e o kimbundu, no chamado “português popular africano”, poderíamos, em muitos aspectos, no que tange à morfossintaxe e à fonética, compará-la ao que ocorre no Brasil. Um estudo-análise focado nas variações presentes na concordância nominal, considerando-se o ‘português’ em distintas conjunturas, mostra-nos tal situação também presente em “Quarto de Despejo”. É demonstrado, que no “nível fonético”, por exemplo, verifica-se “Alternância entre o [l] e o [r], que funcionam como alofones do mesmo fonema” (OLIVEIRA et ali, 2009, p.266) Essa alternância é encontrada em passagens do livro como com os pares impricar/implicar, em “Se fosse uma reprensão justa, mas a dele é impricância” (JESUS, 2018, p.52) ou em “Hoje é a Nair que começou a impricar com meus filhos” (JESUS, 2018, p.14). Outros “níveis” são avaliados e demonstram uma realidade lexical bastante semelhante à brasileira, segundo Oliveira et ali (2009, pg. 267). No “nível morfológico”, situações em que há “Queda do -r final do infinitivo”, também podem ser notadas em passagens do texto, como: “Eu vi ela fazê” (JESUS, 2018, p.52). O desvio normatizo de uso das concordâncias verbal e nominal está presente nos falares tanto do grupo dito “popular” quanto no tido como “culto”, mas é estigmatizado apenas no primeiro grupo, devido ao menor índice de realização entre seus falantes. Os seguintes excertos exemplificam: “Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz” (JESUS, 2018, p.30) ou em “vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobre comove os poetas” (JESUS, 2018, p.53).
Considerações Finais
A presença maciça dos povos bantu em todas as regiões do Brasil, em cada instituição que compunha a sociedade colonial e pós-colonial, foi elemento fundamental para a distinção entre o português falado no brasil e o português falado em Portugal. Escravizados e seus descendentes, africanos e afro-brasileiros, foram os principais difusores da língua portuguesa no Brasil, mas foram também os formatadores da sua variante social majoritária, o chamado português popular brasileiro, constituído fora das instituições de ensino e da escrita formal e colocado em situação de inferioridade à variante apelidada “culta”.
Retomamos neste artigo o termo “pretoguês” como forma de enaltecer a influência negra, importante para a consolidação do português brasileiro, confrontando, assim, o pensamento dominante que estigmatiza pessoas negras como não capazes de utilizar o português com propriedade. Endossamos a crítica que reconhece o apagamento histórico das mudanças linguísticas influenciadas e vividas pelo povo negro devido à quase inexistência de textos escritos por negros, pois a estes era negado o letramento.
O livro “Quarto de Despejo” é utilizado para demonstrar as influências bantu presentes nas marcas de oralidade de um povo representado na escrevivência de Carolina Maria de Jesus. Além disso, propomos uma análise discursiva do texto escrito pelo jornalista que prefacia a obra, o que nos permitiu identificar a prática social mais ampla que marginaliza e desumaniza os falantes do “pretoguês”, sintetizados na figura de Carolina. “Quarto de Despejo” revela-se importante também na demonstração da influência de línguas bantu constitutivas da nação angolana no português do Brasil, pois sua escrita recheada de marcas de oralidade apresenta variações correntes no uso da língua popular brasileira de sua época.
Qualquer variedade da língua possui plenitude formal e é dotada de suficiente potencial semiótico. Assim, “qualquer hierarquização entre as variedades linguísticas (e entre as línguas) se dará por razões não linguísticas” (FARACO, 2019, p. 41). Não obstante, ainda que possua traços estigmatizados, o livro “Quarto de Despejo” oferece uma série de escolhas vocabulares, semânticas e pragmáticas sofisticadas, como quando Carolina denuncia a violência doméstica comumente enfrentada pelas mulheres da favela do Canindé:
Elas alude que eu não sou casada. Mas eu sou mais feliz do que elas. (…) E elas tem que mendigar e ainda apanhar. Parece tambor. A noite enquanto elas pede socorro eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses (JESUS, 2018, p.16).
O que defendemos aqui, é que o “pretoguês” alicerça o português brasileiro, variante mais óbvia nas falas dos grupos subalternizados em relação à classe possuidora do poder linguístico hegemônico, que descarta a possibilidade de compreender a profundidade discursiva dos enunciados daquele grupo.
REFERÊNCIAS
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VIEIRA, V. C.; RESENDE, V. M. Análise de discurso (para a) crítica: o texto como material de pesquisa. Campinas: Pontes, 2016.
1 Docente do IFB, doutoranda do UnB jaquel.coelho@yahoo.com.br
2 Docente do IHAC (Universidade Federal da Bahia) santanatigana@gmail.com

Jaqueline Coêlho
Docente de Língua Portuguesa do Instituto Federal de Brasília – IFB, campus São Sebastião, onde atualmente coordena o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABI/CSSB). Doutoranda em Linguística – Linguagem e Sociedade pela Universidade de Brasília (PPGL-UNB). Realizou visitas técnicas ao Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (UC) e à Universidade de Cabo Verde (UNICV) para o desenvolvimento de sua pesquisa de doutorado. Sua dissertação ganhou menção honrosa no Prêmio de Teses e Dissertações: Luiz Antônio Marcuschi, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguística. Possui experiência de docência em Cuba, em cooperação técnica entre o Ministério da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde – OPAS/OMS. Atua em pesquisas sobre Estudos Críticos do Discurso e Estudos Feministas Decoloniais e de Raça.

Tiganá Santana
É Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos (IHAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atuando no Bacharelado Interdisciplinar em Artes. Possui Doutorado em Letras pelo Programa de Estudos da Tradução do Departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente desenvolve pesquisa de Pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros/USP. Suas investigações voltam-se, principalmente, para as línguas, linguagens, artes e cosmologias africanas, com ênfase nas culturas bantu – destaque-se a civilização dos bakongo. No âmbito dos Estudos da Tradução, direciona-se à investigação intersemiótica, tendo como base constante referenciais teóricos afrocentrados. Possui pesquisas em torno de pensadores africanos como Bunseki Fu-Kiau, Zamenga B. e Sophie Oluwole.