(texto descoberto por camponeses dentro
de uma parede da cidade velha de Frontê)
“E com engenho inquieto e desejoso de alcançar fama per cavallarias maginadas com fervor juvenil, determinava hir-se aquelle verão à velha Frontê”1
As Cidades Imaginadas é um texto que relata o modo como o seu desconhecido autor se encontra, na cidade de Flórdua, com um homem de nome Joel Jilodeu. O encontro tem lugar na casa de um antigo embaixador, cujo nome nunca chegará a ser referido. O relato consta essencialmente da longa intervenção com que Jilodeu brinda o anfitrião e o amigo ao longo de toda uma noite. Até à meia-noite, no contexto de uma “Introdução” em dez pontos, Jilodeu fala de uma cidade que os habitantes do arquipélago de “Sobre” diziam ter existido (Cisnira); na segunda parte, ou seja, até ao nascer do sol, Jilodeu conta a história geológica e poética do mundo, tendo como fonte os relatos orais do seu sogro, o Professor Czedus, ex-director do Museu da História do Planeta, sediado na parte antiga de Muça. A longa digressão da segunda parte enquadra, em nove partes distintas, quer a enunciação das eras geológicas, quer a narração da vida inicial do ‘homo sapiens’ confrontado com adversidades, perigos e todo o tipo superações. A complementar estes dados de fundo, é depois relevado o papel da corrente quente de Aliganta na geografia do povoamento, assim como a memória das glaciações. Por fim, a temática do fogo e do degelo precede a exposição de uma teoria que advoga uma relação específica entre espaço, lugares e figuras, por um lado, e o povoamento nómada dos primeiros habitantes do planeta, por outro lado. Quando o sol nasce, a intervenção de Joel Jilodeu termina subitamente e o anfitrião despede-se, de forma enigmática, dos seus ilustres visitantes.
Introdução
1
Conheci o Joel Jilodeu numa travessia da grande lagoa. Era um homem alto e magro. Uma seta de marfim com os pés espetados na terra e umas guturais que faziam vibrar as raízes dos plátanos. O cinto apertado dividia-lhe o corpo em dois como se fosse uma almofada de penas atada a meio por um fio de nylon.
Andava com os pés virados para fora e o cabelo liso e comprido levantava no ar uma caligrafia eléctrica. Era um hímen expressivo que avançava com passos curtos, moldando tudo com a sua palavra líquida e aconchegada.
Quando cheguei à margem esquerda da grande lagoa de Flórdua e me dirigi para a alameda onde morava o embaixador, percebi que o destino nos havia proporcionado um duplo reencontro. Não só tínhamos viajado no mesmo barco como (quem havia de dizer!) nos dirigíamos para a mesma casa.
Joel Jilodeu era amigo de longa data do embaixador. Tinham-se conhecido em Liçamela há muitos anos, precisamente depois de o embaixador, com algum escândalo, ter abandonado a sua carreira. Raramente conservo uma memória tão nítida de uma noite que mal parecia ter começado, quando o sol, vindo de Nascente, bateu nas heras do telhado. Joel Jilodeu falou horas e horas a fio sobre aquelas cidades extraordinárias que conhecia como ninguém. Começou por falar da cidade de Cisnira e, depois das doze badaladas, sentiu um fôlego raro que o levou a explicar como tinha sido criado o nosso mundo.
Comecemos pela primeira parte. Dizia Joel Jilodeu com as suas palavras que eram ágeis como os pequenos macacos de Apara:
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A cultura da cidade de Cisnira é obviamente cristã. No entanto, os seus habitantes acreditam piamente que Cristo, quando tentou ressuscitar, se sentou na pedra e aí ficou indeciso até hoje. Por isso, em vez da cruz, usam uma figuração diferente: um homem de barba comprida sentado num bloco de calcário com o polegar nas virilhas e os dedos abertos sobre as coxas.
Jesus é admirado por ter ficado na companhia da humanidade. Por outro lado, a sua indecisão entre o mundo terreno e o além do “Pai” tornou-se no maior dos símbolos de sabedoria. Se o Natal celebra o nascimento de Cristo, a Páscoa, a grande festa do ano, celebra a indecisão mística de Jesus.
As pessoas são culturalmente indecisas. Há muitas casas inacabadas na cidade e os objectos do dia-a-dia baseiam-se num misto de designs e formas diferentes. É, pois, normal verem-se chávenas circulares com um pires geométrico, rolos da massa com pegas diferentes e candeeiros na via pública que ostentam lanternas oitocentistas apoiadas em hastes de aço com forma de boomerang.
Por vezes, encontram-se pessoas com vários nomes e, para tal, a escrita adoptou um sistema de equivalências. Por exemplo, o senhor Alfredo = Manuel = Jacinto Soares Nunes tem três nomes próprios que se equivalem, precedendo os apelidos. Esta indecisão origina demoras e interpelações complicadas, quando duas pessoas se apresentam. O senhor Soares Nunes apresentar-se-ia como “Alfredo igual Manuel igual Jacinto” e é claro que as leis sociais condenariam severamente o interlocutor, se por acaso perguntasse – “Mas devo tratá-lo por Alfredo, Manuel ou Jacinto?”. Os rituais do quotidiano são profícuos em mal-entendidos e, por isso mesmo, há verbos que são utilizados até à exaustão para curar todos os males, como são os casos de desdizer, desmentir ou ainda de desfazer.

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Vista do lado do mar, Cisnira parece uma mancha de humidade que marca em profundidade os basaltos da colina. Se nos aproximarmos do cais, veremos essa mancha a encorpar como um cavalo que levanta as duas patas dianteiras no ar. A partir das lajes do porto, a cidade revela-se subitamente com uma brancura rasgada pelas ruas negras de xisto. Em dias de ventania, Cisnira parece uma escultura que acompanha o solo vulcânico como se tivesse sido recortada em papel.
Originalmente, a cidade era apenas subterrânea. Os grandes arquitectos sempre planearam os edifícios a partir do rés-do-chão na direcção, como se dizia, “do centro da terra”. Chegados a um ponto em que já mal se respirava, projectava-se então para cima.
O primeiro andar exterior de um edifício é geralmente o quinto ou o sexto, porque, sob o rés-do-chão, a construção já conta com quatro ou cinco pisos (a maior parte das vezes com pés direitos diferentes). Daí que a cidade visível, ou seja, aquela que se vê erigida sobre a terra, corresponda a cerca de um quinto do total real da urbe.
Ao centro, a catedral impõe-se devido às grandes dimensões que ostenta, o que significa que as naves mais profundas, na sua larga maioria abandonadas, são descomunais. Diz-se que nessas naves existe uma segunda Cisnira.
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Na Antiguidade, os habitantes de Cisnira eram chicoteados depois do trabalho. Tinham apenas um dia de tempo livre, mas, para evitar a má consciência, tudo faziam para não o aproveitar na totalidade. O salário que ganhavam era proporcional ao tempo livre que desfrutavam em cada mês.
O nível de vida não era muito elevado, já que, por uma questão essencialmente moral, as pessoas não abusavam do tempo livre que lhes era proporcionado. Hoje em dia, a tradição continua a ter muito peso. No entanto, os chicotes passaram a ser simbólicos: uma armação pouco sofisticada de onde saem alguns fios de cânhamo.
Quando termina o trabalho, as pessoas continuam a manter o ritual do chicote (como se descessem juntos a um café para partilhar um copo der cidra). Os chicotes deixam pequenas marcas nas costas que são bem vistas por toda a gente.
Há várias lojas especializadas em produtos regeneradores dos tecidos e da pele, cujas marcas definem estatutos e posições sociais. A moralidade religiosa estimula a indecisão entre cuidar das manchas do corpo ou deixá-las cicatrizar de modo natural.

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A par de alguns legumes e da carne de touro, o alimento preferido na cidade é o granito. A preciosa pedra magmática é importada de uma ilha que dista dez quilómetros de Cisnira. Razão por que a arte da navegação progrediu tanto ao longo dos últimos três milénios. A indústria naval e a manufacturação de cordas e velames desenvolveram-se a par do fabrico de chicotes.
Em todas as casas de Cisnira existe um graal que não apenas desfaz o alho, os coentros e outras ervas locais (casos do amarisco, do talbute ou do assatil), como também desmembra os pedaços de granito de grão fino, separando sobretudo os bagos de mica e olivina dos restantes componentes.
Diluídos em azeite ou em óleo de fígado de tubarão, esses bagos minúsculos são absorvidos por uma massa de miolo de pão com a forma de dois testículos.
Além de símbolo de fertilidade, o alimento à base de olivinas e micas é particularmente nutritivo. É por isso que, na língua da cidade, essa massa de miolo de pão recebeu o nome de “Avassaladora”.
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A organização política da cidade evoluiu com o tempo e foi sendo simplificada ao longo de quatro períodos distintos. Tudo começou no ano azul, quando o velho regime autocrático caiu após o terramoto da neve. O primeiro período democrático coincidiu com a reconstrução da cidade. O regime criado nessa época baseou-se em duas câmaras e na simultânea intervenção do rei. Não tendo nunca verdadeiramente chegado a funcionar, o regime acabaria por colapsar. Ficou conhecido pela “monarquia do impasse”.
No início do século cisne, a monarquia fragmentou-se ao longo da famosa “noite dos seis meses” (uma oração pública que trouxe para a rua, durante meio ano, perto de metade da população do país). Foi então necessário criar uma segunda constituição que teve como base uma única câmara. Esta redução foi acompanhada pela necessidade de consagrar, através do sufrágio universal, a eleição de um presidente. O novo regime voltou a paralisar vida pública durante anos, já que as decisões passaram a depender de três instâncias (parlamento, governo e presidente) e não havia decreto que não se arrastasse, pelo menos, durante catorze a quinze luas. A constituição deste segundo regime democrático nunca chegaria a ser redigida na íntegra. Por isso mesmo, o segundo regime ficou conhecido por “Carta Inacabada”
O terceiro regime, instaurado a meados do século cisne, após uma década de constituintes sempre adiadas, adoptou o fim do parlamentarismo. As únicas eleições que previa deveriam ser realizadas de seis em seis sóis e a elas se submeteriam candidatos a primeiro-ministro com projecto próprio. Os partidos e a figura do presidente desapareceram da cena politica neste regime que ficaria conhecido por “Pilar solitário”. Curiosamente, o primeiro primeiro-ministro eleito governou durante quase cinquenta sóis, a pretexto de que a nova constituição “não estaria redigida na íntegra”. Quando tal aconteceu, perto do fim do século cisne, marcaram-se novas eleições. Só que, ao contrário do que estava constitucionalmente estipulado, o primeiro-ministro decidiu avançar com um referendo que pedia aos eleitores que se decidissem entre a existência do regime tal como se tinha vindo lentamente a implementar e/ou a existência de um outro regime de cariz presidencial que fosse referendado apenas de dez em dez sóis. Com uma abstenção de 93%, o quarto regime foi aprovado por cerca de 4% da população (tendo em conta apenas os votantes, a proposta vitoriosa atingiu uma percentagem de 57,1%).
O actual regime, conhecido como “Referendo Quatro”, baseia-se no poder unipessoal referendado. Um pequeno governo, presidido pelo presidente, comanda os destinos da cidade e todas as matérias que justificam uma decisão estão dependentes de inúmeros grupos de trabalho. Não há pessoa na cidade que não pertença, ao mesmo tempo, a dois ou mesmo a três grupos de trabalho. Por exemplo, a preparação de uma nova lei de bases do código da estrada está a ser apurada por oitenta e dois grupos de trabalho há quase nove anos. Com uma outra importância, o mesmo acontece com leis ligadas a sectores importantes como são a educação, a saúde ou o trabalho. Nestes casos, o período de incubação legal corresponde a mais de uma geração e os grupos de trabalho chegam facilmente às cinco ou às seis centenas. Cisnira é, pois, anfitriã de uma democracia participativa, lenta no seu funcionamento e ponderada a partir da sua matriz de indecisão social.
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A escrita dos cisniros tem a sua origem na contemplação das estrelas e dos planetas: pequenos pontos luminosos sobre uma superfície aparentemente plana. As primeiras escritas datam do final do segundo milénio a.C. e consistem em quadrículas muito pouco geométricas desenhadas em tábuas de xisto. Algumas dessas quadrículas surgem em branco e outras aparecem assinaladas com cruzes, traços incertos inscritos na diagonal e sobretudo com pontos relativamente bem vincados.
A partir 300 a.C., o sistema apurou-se, tendo-se libertado de um hibridismo que tendia a ser cada vez mais confuso. Subitamente, as quadrículas tornam-se geométricas e a inscrição passou a ser feita apenas com pontos. É na relação entre quadrículas em branco e quadrículas preenchidas com um ponto que se descodifica a mensagem. A escrita alfabética revelou-se sempre muito rudimentar neste sistema, pois apenas as vogais abertas e as consoantes oclusivas e fricativas (umas de natureza explosiva, as outras criadas por fricção) têm correspondência gráfica. A maior parte da significação é, pois, ideogramática e não sonora.
No século XIV d.C. o chamado ‘Código Januário-o-Pequeno’ erradicou as quadrículas e aumentou a capacidade alfabética, ainda que a tradição ideogramática tenha continuado a sustentar o sistema. Os cisniros habituaram-se com o tempo a esta lógica um tanto abstracta que se traduz visualmente por um fundo branco marcado apenas por simples pontos. A interpretação das mensagens depende em boa parte dos contextos gerados na comunicação e adapta-se, portanto, a leituras variadas em torno de um mesmo motivo (é a chamada “leitura flamejante”). A indecisão tem espaço, neste sistema, para poder ser praticada com bastante utilidade.
A essência desta escrita reside na articulação entre ideias e alguns sons da língua falada. Por seu lado, a leitura do cisnírico é vertical e avança, no espaço, quer de baixo para cima, quer de cima para baixo. Os gramáticos referem a importância da “flexão concomitante” entre estes dois movimentos do olhar, um ascendente e o outro descendente, de modo a descodificar ao máximo as conotações presentes na linguagem. Ou seja: um texto jornalístico, de fraca presença metafórica, lê-se confortavelmente sem grandes saltos entre pontos localizados nas partes de cima e de baixo da folha de papel, enquanto um texto literário implica uma certa destreza ao nível dos tendões do pescoço, pois exige que seja apreendido, quase ao mesmo tempo, quer o que está registado na parte de cima, quer o que está registado na parte de baixo da folha do papel. É por isso que os suportes, sejam livros ou jornais, são geralmente cinco vezes mais altos do que largos. Esta linguagem multimodal é única no mundo.

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Um texto normal de reportagem, se for lido com a cabeça a oscilar poderosamente para cima e para baixo, pode tornar-se num poema épico. Do mesmo modo que um poema épico, se acompanhado de um movimento de leitura vagaroso (ascendente e descendente), pode parecer uma sequência sem qualquer sentido. O essencial da literacia de Cisnira passa pela boa proporção entre o movimento da cabeça e o texto concreto que está à sua frente.
A chamada “latitude de um texto” corresponde à velocidade apropriada para uma boa leitura na vertical. Saber ler implica muita ginástica física e sobretudo um conhecimento aprofundado das potencialidades dos músculos do pescoço, nomeadamente os supra-hióideos, o platisma ou cutâneo e os músculos da nuca.
Nas escolas primárias, a escrita cisnírica é praticada de modos complementares. As crianças são habituadas, num primeiro passo, a “criar contextos”, dramatizando situações imaginárias de jogo, aceitação, proibição, medo, alegria, infelicidade, entre muitas outras. Cada estado de espírito acolhe, naturalmente, um certo tipo de escrita (o chamado “discurso de moldura”). O segundo passo centra-se no estudo das expressões alfabéticas que a escrita cisnírica possibilita. O terceiro e último passo diz respeito a uma fase de estudo que se estende, pelo menos, até aos dez ou onze anos de idade e onde são aprofundadas as possibilidades ideogramáticas do cisnírico (trata-se de uma aprendizagem que, de facto, se prolonga por toda a vida).
O estudo sistemático da leitura só se torna numa realidade já no ensino secundário, tal é a complexidade do sistema. No entanto, uma criança com sete ou oito anos pode já ler textos integrais, ainda que não descodifique todas as camadas expressivas. A riqueza da escrita e da leitura cisnírica converge num facto fundamental que é o de possibilitar a descodificação de planos muito diversos num mesmo texto, para além daquele que o contexto mais imediato aconselharia. E se a inserção dos pontos na folha for criativa, o que está ao alcance apenas dos poetas e de alguns escritores, torna-se relativamente fácil, com uma boa destreza corporal, recolher num único texto uma imensidão informativa que outras escritas planetárias jamais atingirão. Quanto maior for a capacidade de indecisão ao ler fisicamente um texto, tanto mais ele se torna produtivo.
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Os mitos são cabeças que rolam. Memórias que colhem memórias e que esvoaçam nas cabeças que rolam ao longo do tempo. Muitas vezes um tempo que não se conta a si próprio: propaga-se como se sempre tivesse sido assim. É esta a ideia que os cisníricos têm do mito.
A imagem “cabeças que rolam” tem a sua origem numa batalha naval que teve lugar há quatro séculos. As balas esféricas de metal e as cabeças, segundo reza a lenda, rolavam dentro dos barcos e embatiam nas amuradas como “pingas grossas da água da chuva”. E nestas cabeças separadas do corpo havia ainda histórias inacabadas, histórias por contar, enredos que ninguém mais conseguirá compor e recompor. O mito é, pois, para os cisníricos um termo que condensa mundos por contar, por revelar, por concluir.
O mito é uma palavra que raramente é utilizada de modo pejorativo. O uso da palavra tem um espectro largo. Aparece associado, por exemplo, a pessoas muito imaginativas (“parece que tem uma cabeça que rola”), dotadas (“um verdadeiro rolante”) ou capazes de criarem ideias a partir do nada (“um improviso que girou à roda”). Mas também aparece associado a uma sabedoria imperscrutável (é um realmente uma pessoa “rodada”), a alguma incomunicação (é uma mulher que “roda em excesso”) ou a introversão exagerada (um autêntica “roda” de pessoa).
Por vezes, o mito é visto como uma ousadia (pessoa com demasiadas ideias ou curiosa – uma “rodinha que gira demais”), como uma ostensão desnecessária (dá nas vistas como “escravo rodado”) ou ainda como postura que pode roçar o ridículo (aquele “rolou em cheio na amurada”). Além destes usos ideomáticos, o mito é sobretudo visto como um somatório de lendas orais sem princípio nem fim que se vão ampliando, no quotidiano, a partir de uma determinada matriz (que os cientistas sociais designam por “roda fiel”). O mito e a roda são invenções capitais. O primeiro faz rodar o mundo, a segunda faz andar o corpo à procura do fim e do princípio (é a chamada “roda da vida”, ilustrada em vasos antigos sob a forma de um traço que se enrola a si próprio sem cessar).
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Enquanto Jilodeu falava dos mitos, as doze badaladas cortaram a noite em duas. Parecia que o relato ia terminar, mas tal felizmente não aconteceu. Depois de evocar Cisnira, a cidade que os habitantes do desaparecido arquipélago de Sobre imaginavam ter existido mais a sul, eis que Jilodeu olhou para o embaixador e anunciou que ia contar a história do mundo. Ficámos pasmados. Antes, fez uma confissão pessoal, aliás a única naquela longa e memorável noite sem fim:
Quando casámos, a minha mulher era magra, muito magra. Era uma folha de orquídea espalmada com cabeleira loira e um sorriso a iluminar a névoa dessa cidade extraordinária onde nos conhecemos que dá pelo nome de Arlgui. Por vezes, em dias quentes, reduzia-se às nervuras e quase desaparecia. Uma magreza que a tornava pouco material. Nessas alturas, não passava da espessura da folha a oscilar na brisa da tarde e os talos onde tiniam pulseiras davam-me a mão com ternura. Era tão magra que dela ia sobrando apenas o perfume. Com o tempo, habituei-me a seguir-lhe a sombra e, depois, deixei mesmo de a ver. Na verdade, passei a senti-la só através do olfacto. Abria as duas narinas e o meu amor por Perséfone transformava-se naquele sorriso de névoas.
Joel Jilodeu disse ainda que o pai de Perséfone, o senhor Czedus, era uma figura de papel vegetal com dotes de trepadeira: os braços enleavam-se enquanto falava e o espaço à sua volta tornava-se numa espécie de fonte circular, tal era a quantidade de gafanhotos que cuspia por segundo. No entanto, era uma simpatia no trato e no modo como, também ele, vibrava a contar histórias antigas ou episódios do dia-a-dia. As longas barbas, fruto de uma promessa muito antiga, cobriam-lhe todo o diafragma. Czedus era o director do Museu da História do Planeta, o maior que existia – e ainda existe – na velha Muça.
“O que vou relatar-vos daqui em diante – e peço-vos ilimitada paciência, meus amigos – é um relato que decorei da boca de Czedus, ao longo das muitas tardes com que com ele convivi”-
I
O corpo é uma rocha
1
O Paleozóico, aqui chamado Arlguizóico
Na primeira metade do Muçâmbrico / Câmbrico (570-500 Milhões de anos)2 originaram-se, na região meridional de Muça, entre Meçlu e Alteve, diversas bacias de sedimentação em cujos fundos se depositaram os sedimentos clásticos que constituem os primeiros terrenos do mais antigo período geológico do planeta: o Arlguizóico (equivalente ao Paleozóico do planeta Terra). Este verdadeiro chão do mundo era propício à fecundação, pois os fluidos das espécies abundavam dentro e fora dos organismos. Sobre os terrenos dessa época remota deslizava uma espécie de orvalho de onde brotava todo o tipo de vida. É por isso que os mitos da criação do mundo se referem a barcas onde cada espécie havia sido colocada pela mão papuda dos deuses.
As bacias são espaços que recebem outros espaços. O mundo sobrevém tal como um corpo recebe outro corpo e o fecunda e transforma na água espessa de onde sairá um terceiro corpo que depois se expande como os alvéolos. As bacias têm geralmente uma forma compacta, parecida com um favo de mel. Uma forma que se propaga como um eco à procura da sua voz. Se se pudesse observar o planeta a partir de um satélite, nessa época, ele assemelhar-se-ia a um oceano de hexágonos que se multiplicaria muito rapidamente. O zapping da primeira consciência.
Os fragmentos clásticos são de cor nublada como aqueles que interrompem uma arriba sob a forma de ferida exposta. Trata-se de um ponteado que antecede a sutura do tempo, assemelhando-se a uma torre de aço em forma de glande que irrompe, sem que o seu destino não seja outra coisa senão irromper. Os primeiros tempos do mundo podem comparar-se a um acto sexual ininterrupto que deverá ter durado cerca de oitenta milhões de anos e onde participaram todas as espécies e muitos acasos e acidentes da natureza.
Na era geológica mais recuada, o acto de irromper esteve na origem, estaria no coração do presente e fez-se à vida igualmente no devir. O tempo estaria a inventar-se como um caudal que não se move, enquanto a matéria aflorava e irrompia naquele modo próprio do que brota, jorra e se solta sem quaisquer amarras. Um ponteado que irromperia com nobreza mineral, porque alastrava à imagem de um delta, ainda que contido pela tez sombria das secções da arriba onde se precipitaria. Um tempo que estaria ainda, de certa forma, fora do tempo. Um tempo abismado.

2
As rápidas deposições de sedimentos
Os primeiros depósitos sedimentares foram observados a sul da antiga cidade de Suçobre e no meio do continente que liga Praia Hafun a Sibilin (actualmente União de Estados do Papel). Em todas estas regiões, a presença de rochas granitóides ante-Muçâmbricas é ainda hoje evidenciada pelos depósitos arcósicos de base. Sobre esses depósitos do Muçâmbrico deambulavam pequenas luzes errantes que se ficavam a dever às microalgas do fitoplâncton que viviam, quer no fundo das águas, quer também à superfície.
A presença na sucessão muçâmbrica dos calcários de arqueociatídeos define a região sul de Muça, a região intermédia da actual cidade de Suçobre e a linha Praia Hafún – Sibilin como um litoral recifal, cuja extensão, nos nossos dias, pode apenas ser testemunhada junto ao mar de Muça (com destaque para o ocidente da actual cidade de Alteve). Disseminado sobre os calcários de arqueociatídeos, a enzima das microalgas (conhecida por luciferase) deu origem a manchas luminosas muito semelhantes ao olhar dos felinos no meio da noite.
Os arcózios são rochas sedimentares areníticas recheadas de fragmentos de feldspato. A deposição que dá origem às formações arcósicas é rápida e, muitas vezes, é acompanhada pelo arrasto de excertos de mica. Como numa orquestração em que o solo entra desencontrado a meio da frase musical que foge na sua forma de grãos arenosos e angulosos. Quando mais a desmontagem se expunha, mais as luzes provocadas pelas enzimas das algas acendia. O mundo, na sua infância, era como uma imensa cidade nocturna observada de avião: o polvilhar dos brilhos e a incandescência das micas conviviam com bulícios que eram emitidos por organismos gerados pelo plâncton marinho. Um prelúdio para faunos que, nesses tempos, eram larvas minúsculas com hastes em forma de espiral.
A deposição rápida foi sempre apanágio de viagens tão fugidias que nem o traçado do caminho terá tido tempo para evitar as clivagens e as falhas que acabaram por marcá-lo. Estas marcas correspondem ao rosto e à voz de um coro grego feito apenas de arcózios. Estes sedimentos são a ilustração clara de que, por vezes, a história precisa de ser rápida, volátil, nula. Como se o princípio e o fim fossem um único arcózio de cor pastel, quase translúcida. Como se o tempo do começo e o tempo do fim fossem um único: ambos sobrepostos num único ponto. Num único arcózio feito de uma miríade de arcózios.
3
Conglomerados que escalam a profundidade do tempo
No norte do antigo continente, sobretudo na parte mais setentrional de Vejelho e Enhoca, o Muçâmbrico foi acompanhado por importante vulcanismo, evidenciado por diversas rochas eruptivas, entre as quais avultam espilitos.
Os espilitos fazem parte da família dos gabros e têm a validade dos bardos poéticos inorgânicos: são quase eternos. Apresentam granulação fina, vesicular e esvaem-se na palma da mão através de uma breve nuvem esverdeada de cristais.
Este tipo de actividade vulcânica acentua-se ao sul de Fronte, na região de Alteve, mas também em Suçobre e, a norte, em Primeu e Vejelho ou ainda em Verde, sobretudo na região de Alibe.
Os espilitos podem ser assoprados como pétalas que se libertam do cálice para se diluírem na memória do mundo. Persistirão na alma dos humanos, dos faunos e de muitas outras larvas ao jeito dos amores-perfeitos que se confundem com o papel de bíblia espalmado.
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Augurando o zénite subterrâneo
A longa duração é a fibra secreta dos espilitos, essa lava alisada e esmagada pelo verbo dos bardos que perdura na crista das montanhas subaquáticas. Debaixo dos oceanos, a matéria redescobre a sua própria redenção. É aí que a escrita tem o nome de sombra (uma espécie de fio de seda que se faz mancha e que encobre todos os signos que cria).
O movimento Pós-Muçâmbrico (há 400 milhões de anos) inicia-se por movimentos testemunhados por sedimentos grosseiros, conglomeráticos e arenitos de base. Este conglomerado de base é particularmente desenvolvido em Bela e Frontê, mas também em Niorku (UEP), sul de Vejelho ou na parte norte de Suçobre. As enzimas luminosas foram-se perdendo nessa fase e a estranha fala gerada pelo plâncton marinho foi-se tornando cada vez menos audível. Uma lira apagada no meio das estrelas subterrâneas.
Semelhantes formações podem ser observadas em Novara (linha Recte-Gritox), a leste da cidade de Plá e a sul da antiga Novaveja. O aspecto grosseiro do conglomerado é notável no litoral da actual cidade de Gritox e na faixa onde hoje se construiu o porto de Suçobre. Quando aí se batem palmas, ouve-se ainda o eco longínquo de uma lira (como se o dedo dos deuses tocasse na forquilha do diapasão e esse som fosse a grande erecção que antecede a natureza do verbo).

Grosseiros, conglomerados, porventura reunidos num único sistema solar minúsculo. São arenitos friáveis, seres suaves que escalam a profundidade do tempo, movendo o ser de cima para baixo, na vertical, augurando o zénite subterrâneo e procurando leitos no corpo a corpo que foi sedimentando as suas esperanças.

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A imersão e a emersão dos continentes
Do Pós-Muçâmbrico passou-se muito lentamente para o Silurilônguo / Silúrico (tudo se passou até há 385 milhões de anos). A alternância de xistos e quartzitos reflecte a sedimentação que caracterizou a parte final do Pós-Muçâmbrico. No termo do Silurilônguo, grande parte das regiões meridionais do velho continente e vastas zonas do leste do globo (Plá, Kabr e Dirto) estiveram submersas pelo mar e, no início do Dakavónico / Devónico (há 370 milhões de anos), a profundidade aumentou, tendo-se originado sedimentos argilosos finos e ricos de fósseis. Alguns desses fósseis parecem animais quadrúpedes com as patas dianteiras no ar a rasgar a curvatura dos céus.
No final do Dakavónico (há 340 milhões de anos) deu-se a reemersão de grande parte dos territórios, tendo Kabr e Plá formado um único continente filiforme (o cordão umbilical ou a língua do rochedo do grelo). O domínio marítimo manteve-se a norte do velho continente, nomeadamente em Verde onde a passagem gradual do Dakavónico para o Halitecarbónico / Carbónico (há 340 milhões de anos) foi representada por formas nuvianas / Turnacianas (xistos, grauvaques e calcários de Pericy-clus princeps).
As formas nuvianas correspondem ao compasso que rege os ciclos de imersão e emersão dos continentes. De um lado, o lugar onde o mundo pouco ou nada pesa, quando empurrado pelas trevas; do outro lado, o lugar onde o mundo gravita compacto de si mesmo, quando carregado pela aragem apolínea que vem dos raios do sol. Um vaivém que se mantém, apesar de o diapasão dos deuses se continuar a ouvir ao longe (como se fosse a cana furada que a boca do pastor assopra sobre os pêlos e os orifícios mais húmidos dos animais).
Pelo meio, fica a linha de água, a marca de água das marés, o rego ou a greta sem fim que é o istmo de todas as passagens. No fiel da balança reside o ponteiro invisível que acompanha o compasso nas mãos do maestro, esse talude imerso-emerso que dança no interior de cada ciclo à procura do seu próprio lugar.
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Os gnaisses que resultam da deformação dos granitos
No final do Frontêliano / Vestefaliano (há 300 milhões de anos), uma fase orogénica de grande relevância provocou diversas imersões e emersões em todo o antigo continente, incluindo, a leste, a actual região de Flórdua e ainda os primeiros territórios do ocidente do globo, nomeadamente a formação inicial de Hoks, o arquipélago de Laran (que corresponde à linha Pink-Laran) e, mais a sul, o arquipélago de Bom Pacto.
Posteriormente, na fase final do Halitecarbónico (há 250 milhões de anos) formaram-se diversas bacias em Sasal (Novara), em Ceja (Bom Pacto) e no sul de Dirto, e tiveram lugar fenómenos importantes de granitização de que resultou a formação da maioria dos granitos que caracterizam o velho continente (de cariz pós-Alteviano/ Estefaniano e que resultaram de um processo lento que teve lugar até há cerca de 180 milhões de anos, continuando já dentro do período Fliássico / Jurássico). Em certas regiões do leste, caso de Kabr e no norte de Plá, nos conglomerados deste período de transição entre o Arlguizóico (Paleozóico) e o Hafunzóico (Mesozóico), encontram-se calhaus delgados de granito, por vezes de grandes dimensões, que surgem nas encostas ou em áreas planas geralmente acompanhados de gnaisses (paisagens típicas de Lahr ou de Fakr).

Um corpo antigo que emerge traz consigo novas mãos e novos braços. É um corpo que se recompõe saído da longa manhã que o escondeu das margens do tempo. É um corpo que descobre fissuras, vincos e bacias luzidias. É um corpo que luz em cada faceta do seu quartzo adormecido. É um corpo-calhau que se diz anterior à própria água que o consumou e gerou. É um corpo continente que tem cidades na boca muda com que aparece e se diz ainda sem nome. É um corpo de rocha que faz da valsa o seu gnaisse. É um caralho, como diz o povo.
Mas atenção: os gnaisses são corpos já metamórficos que resultam da deformação dos granitos: corpo redesenhado, desfocado, saído do antiquíssimo banho a gritar eureka e, no entanto, ao olhar-se ao espelho (da água), tem já dificuldade em reconhecer-se. Um gigante esculpido em gnaisse que é uma verdadeira deformidade, para que, no futuro, haja pinheiros e rosas bravas que o tornem em sublime forma de aparo. E foi por isso que o corpo do velho continente emergiu. Como um diapasão que se silenciou de vez neste instante mínimo do cosmos. O princípio é, também, uma morte.

1 Chronica de el rei D. Sebastião, por Bernardo da Cruz. Publicada por Alexandre Herculano e Antonio da Costa Paiva Castello de Paiva (barão de) a 1 de Janeiro de 1837. Impressão de Galhardo e Irmãos, Lisboa.
2 Equivalência das designações da história geológica:
Arlguizóico – Paleozóicos || 570-230 Milhões de anos.
Muçâmbrico – Câmbrico (Paleozóico) || 570-500 Milhões de anos.
Pós- Muçâmbrico – Ordovícico (Paleozóico) || 500-400 Milhões de anos.
Silurilônguo – Silúrico (Paleozóico) || 400-370 Milhões de anos.
Dakavónico – Devónico (Paleozóico) || 370-340 Milhões de anos.
Halitecarbónico – Carbónico (Paleozóico) || 345-230 Milhões de anos.
Nuviano – Turnaciano (subdivisão do Carbónico / Paleozóico) || 345-330 Milhões de anos.
Frontêliano – Vestefaliano (subdivisão do Carbónico/ Paleozóico) || 320-310 Milhões de anos.
Alteviano – Estefaniano (subdivisão do Carbónico / Paleozóico|| 290-250 Milhões de anos).
Hafunzóico – Mesozóico || 230-65 Milhões de anos.
Fliássico – Jurássico (mesozóico) || 225-130 Milhões de anos.
Fliássico Final – Jurássico portlandiano (mesozóico) ||150-130 Milhões de anos.
Gritoxácico – Cretácico (mesozóico) || 130-65 Milhões de anos.
Sibilinzóico – Cenozóico|| 65-2 Milhões de anos.
Jerçónico – Paleogénico (Cenozóico) || 65-25 Milhões de anos.
pós-jerçónico – Miocénio (neogénico/ Cenozóico) || 25-5 Milhões de anos.
Pré-Quaternário – Pliocénio (neogénico/ Cenozóico) || 5-2 Milhões de anos.
Quaternário – Quaternário || 2 Milhões de anos – 1.200 a.C./ Idade do Ferro.
Quaternário – I – Plistocénico (quaternário) || 2 Milhões de anos – 8.000 a. C.
Quaternário – II – Holocénico (quaternário) || 8.000 a. C. – 1.200 a.C./ Idade do Ferro.

Luís Carmelo
Luís Carmelo é um escritor português, nascido em Évora (1954). Doutorado em semiótica pela Universidade de Utreque (Holanda), é autor de uma vasta obra que inclui dezena e meia de romances, diversos ensaios e alguns volumes de poesia. Está editado em Portugal, Brasil, Holanda, Espanha, Colômbia e México. Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, 1988. Finalista de vários prémios (os mais recentes do Prémio Oceanos-2019 e do Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d´Escritas-2019). Adaptação ao cinema do Romance ‘A Falha’ (2002) pelo realizador João Mário Grilo. Cronista no Expresso (2005-2009), na RTP1 (2013) e actualmente no Hoje Macau. Desde 2008, dirige a EC.ON – Escola de Escritas (http://escritacriativaonline.net/) e desenvolve parcerias, nesse âmbito, com o CVC (Instituto Camões). É editor da Nova Mymosa. Inventa e desenha cidades.