estou plantada num cantinho da minha juventude
a pronunciar o nome, Cabo Verde, e com ele
tratando de suster o tom e a harmonia dos arbustos,
um hino selvagem que nada tem a ver com a guerra
mas poderia construir-me uma trincheira
unicamente com o palpitar dos seus tímbalos;

redobram dentro de mim ao mesmo tempo
que o peso do entardecer faz curvar os alelis,
e nada existe que não esteja a sair dos meus lábios
nesta primavera tenebrosa.

Estou plantada num cantinho da minha juventude
com uma parte do meu corpo
camuflada na imponente vegetação
que me viu crescer, e a outra
a apontar ao centro sem se mexer.

O meu próprio reencontro foi abrupto
como esta paisagem erma que me ameaça
e me descobre a pele e outras profundidades.

Tive de desafiar o vento muitas vezes,
tive de voltar a narrar-me a mim mesma
aquele frio nos ossos coletivo.

Estou a tratar de chegar à fronteira dos
arquipélagos. Falaria da infância,
mas não é possível meter a infância num poema

e aqui ninguém viu nunca um bosque.

aprendi a manejar o enxadÃo aos sete anos,
sem levantar poeira, nem deixar indícios no ar
da sua ida e vinda até à terra,
como se contivesse na minha pequena fragilidade
a mão destra do coveiro.

Trabalhos de homens, ambos dizem: enterrar e plantar
com objetivos opostos.

Na minha infância cavávamos para a vida,
poderia dizer que cavávamos contra a fome ou que
tínhamos pavor às pragas das batatas
e, de facto, digo que era tarefa das mulheres
suster essa canção do metal e o uivo das
vozes a anunciar a sementeira,
e depois a calar-se.

Preparávamo-nos para plantar e para o inverno.

Perdi todas as lembranças ao mesmo tempo em que na aldeia
se perderam as vindimas, ou se calhar foi ontem,
quando a minha tia
recusou as mensagens encriptadas
no voo dos pássaros.

E preparamo-nos também para enterrá-la.

Hoje trago o meu saber ancestral e cavo
muito fundo para abrir a carne da ilha,
vejo como pinga o sangue do meu pulmão
para o lado esquerdo do Tarrafal.
Acodem-me as mulheres que já deixei para trás
e restos de pregarias para curar um tifo, uma cólera,
panos para o pescoço com papeira da minha irmã.

A minha irmã a abrir a carne com uma reza em chiriguano
e eu cavando sem a sua o centro imaginário destas águas;
sulcos ao sol ilhéu para as canas e para a aguardente
que se prende às gargantas dos homens
e dos miúdos, às pernas alcantiladas das meninas
fartas da beleza e do tom dissílabo do mar.

Eu quis abraçar a carne da ilha e resvalava
como as coxas de minha irmã lutando
contra o ar com a nossa mãe em braços até ao sofá,
preparando-nos para enterrá-la.
A mãe também resvalava entre os seus dedos
como as vísceras ou os ratos de campo que se esquivam
da enxada e da gadanha,
acostumados ao abrigo da terra,
mas sempre soube que atendiam ao
uivo das mulheres.

Aprendemos a manejar o enxadão com sete anos,
sem levantar poeira nem pingar torrões nos regueiros,
mas ninguém nos explicou
que o enxadão não serve para cavar tão fundo
nem na carne nem na chaga,
talvez as mulheres nos protegessem
acerca do plantar e enterrar:
acumulavam no vento
as pegadas do grito

depois, calavam-se para sempre.

Silvia Penas

Silvia Penas é poeta e performer, o seu trabalho tem como ponto de partida a creação de textos, com uma forte vocação de indagar na poesia cénica e outros formatos. A mais conhecida das suas propostas é Cintaadhesiva, cocriada junto com Jesús Andrés Tejada. Foi galardoada em certames como o Premio de Poesía da Universidade de Vigo com a série de poemas Neste bosque e também o seu livro criado a quatro mãos com Elvira Ribeiro Biografía da multitude (NovaGaliza Edicións) teve o Premio Victoriano Taibo de Poesía. As uñas crecen (Ed. Sotelo Blanco) foi olivro gañador do Premio Manuel Lueiro Rey de Poesía. Com a obra Diario de ladras, bailarinas, asasinas e flores (Ed. Fervenzas), obteve o Premio de Poesía Avelina Valladares. O seu último livro publicado é Fronteira Paraíso (Editora Urutau).

#000