Trapos

Permanência incauta de lacrimejantes olhos.
Vestidos de pena, arregaçam a dor do coisificado.
Asseguram posições, deidando trapos.
Escada de pescoços, escala de pés.
Qualquer dia, silenciados ruídos.
Autênticos quais sonhos engolidos.
Trapos de hoje.

Elas na poesia deles

Escrever é um ato de covardia: só os heróis o conseguem.
Os nossos poetas têm-se debatido de forma titânica no intuito de descrever o que de mais belo Deus criou: a mulher. Fazendo crer que a literatura nos apresenta caminhos que nenhum outro poderia oferecer, ao tornar o aparentemente trivial digno de reconhecimento e o turvo brilhante, a ela se associa o elemento Mulher – esse ser humano do sexo feminino ou do género feminino. Resultado: tarefa sobejamente complexa, mas apaixonante.
Creio que esse elemento serviu de mote para que os nossos poetas se lançassem nessa hercúlea tarefa de tentarem saber quem são, olhando para fora de si próprios (para as mulheres).

Mário Fonseca (1939 – 2009) em Se a luz é para todos, apresenta-nos a mulher como sendo:

O segundo erro de Deus (p. 161)

O que prova a existência de Deus
não é ele ter espalhado peixes no mar
pespegado lanternas volantes no céu
lançado pássaros no ar.
Tudo isso que é muito
não basta para provar que o senhor Deus,
Nosso Senhor, é senhor nosso e Deus.
O que prova a existência de Deus
– pelo que lhe dou graças –
é ele ter cometido
o segundo erro de Deus
ao criar-te cheia de graça, ó mulher!
Não fosses tu poeta
terias parado no primeiro
e só haveria homens neste mundo, meu Deus!
Graças a Deus!
Graças a Deus que és Deus
e divino, senhor Deus,
por isso criaste tu
a mulher
para que
para sempre
houvesse no mundo poesia…

De novo, Mário Fonseca:

Quem tem ouvidos para ouvir (p. 50)

Quem tem ouvidos para ouvir
Abra os ouvidos e ouça

Mulheres parindo
Em casebres
De nenhuma higiene
e muito vento
(…)

Prostitutas de 13 anos
alugando
virgindades
por nenhum dinheiro
e muita sífilis.

Num tom marcadamente contestatário e denunciador, traz-nos a mulher prestes a ser mãe (e as condições dessa gestação) e a prostituição na adolescência (juntamente com uma das suas consequências). Ele não tem qualquer receio das possíveis represálias do seu grito (chega mesmo a desafiar quem tem ouvidos para ouvir )

Sua boca e olhos seus (p. 151)

Sua boca nunca eu soube
Nem a cor dos olhos seus.
Sei que depois que os vi
Nunca mas vivi.

Certamente, é impossível que todos os amores sejam efetivados.
Precisamos do caos (provocado pelo amor) para nos mantermos sãos.

Para Corsino Fortes (Paralelo 14) Sergio Frusoni (1901 – 1975), “colocou a mulher no centro da sua poesia, apresentando-a como a fiel depositária da perpetuação da espécie e dona do condão de resolver todos os problemas, mas sempre com dignidade”.
Em A poética de Sérgio Frusoni – uma leitura antropológica, da autoria do antropólogo Mesquitela Lima, encontramos:

Amor ê pom, Bia (p. 84)

Bo ma amor, Bia, t andá tá crê massá:
Amor ta po aga, bo ta pô lenha
Amor ta po sal, bo, bo ta pol farinha.
(…)
Amor, Bia, ê aga, amor ê sal,
Amor ê forne, amor ê pader,
Ma pal dá pom, ê co lume dmorode.

O que é o amor?Quando é que se ama? Quando é que estamos prontos para amar? O que dizer a quem se ama? O amor precisa do seu tempo de cozedura. Até que esteja pronto, o que fazemos? Será que algum dia estará pronto? Amor e pom

Sô trode ratrote (p. 82)

Djodja ta co Lela na regóce
El ta tud te spial,
ta ninal,
ta suspendel pa bróce!…
Lela cá crê sabê!
Se seita ê metel mon na peite.
E tonte já ´l manobra, já ´l rebolbê,
que um mama já pulá pra fóra
e cardil cara tude
cô resping de se lête!
Má já ´l certa cô tornera,
e de boca lapóde na êl,
Já ´l chupá, chupá, tê que já ´l fartá!…

Êl tá tude t´abri boca, agora,
ta resmunga,
tá lisá quês dos cabelim
quel tem na cabeça…
ta spia sê mãe…
e cma êl te jonjá depressa,
Ê sô ruvra ôi, e… já ´l bá cô sone…

Possivelmente, não há melhor quadro que aquele que foi pintado aqui pelo poeta. Abnegação da mãe relativamente ao filho. A primeira, literalmente, tira de si para dar ao segundo. A pormenorização dos momentos e a pertinência dos movimentos revelam um olhar que, deveras, se mostrou curioso, atento e observador: A entrega da mãe e a seita do filho.

Quand um palavra sô te dzê tude cósa (p.238)

Um dia nh´ Armanda infermêra,
Desembarcá tá bem d´ Lisboa:
Luva, cartera
Cabel caracolóde
Cara pintóde
Ta psca confundi parecença.

Um mdjer q´tava ta passa,
Para ta spial,
Cabá el sucdi cabéça el dzê:
– “ Nh´ Augusta, nh´ armôm, PACIÊNÇA!…

Mais uma vez, a mulher é protagonista em Frusoni. Contudo, aqui, ele, querendo ridicularizar o comportamento de uma mulher (Nh´ Augusta) acaba por caricaturizar uma situação: a emigrante em férias para mostrar que se deu bem, segundo a escandalizada, exageranos trejeitos e enfeites fazendo com que não seja, pelo menos num primeiro momento, bem aceite por aquela que ficou. A situação, em si, acaba por ser cómica porém reveladora de um complexo por parte daquele que, por motivos vários, não conseguiu sair da sua terra-natal e daquele que regressou e, por vezes, de forma ufana e despropositada quer mostrar-se.

Ovídio Martins (1928 – 1999) traz-nos Lembrança de Augusta (Gritarei, berrarei, matatei. Não vou para Pasárgada, p.91)

Se me lembro de Augusta!
Lembro perfeitamente
com treze anos
já era menina-de-vida
( tinha uma irmãzinha
Mais pequenina)
Quando barco americano
entrava no porto
Augusta ficava contente
como todas as outras meninas-de-vida
( o estômago de Augusta sorria)
Ah Gusta
Mod ´quem bo te nesse vida
menina?

Mim moce?
Ê dstine moce! Ê dstine!
Se me lembro de Augusta!
Lembro perfeitamente.

Cenário decadente e deprimente da cidade do Mindelo em que a adolescente (Augusta) se encontra e a resignação com que ela recebe o seu fado: a prostituição. Essa é a única forma que ela encontra para o sustento e sobrevivência ( para si, assim como para outras famílias) numa cidade-ilha em que o porto era sinal de esperança numa clara e inequívoca tentativa de driblar a fome.)

Cretcheu( p.66)

Calá, ca bô tchorá más
´m ta tróbe um morninha
Que ta dobe ligria e paz
Que ta pobe sorrise na boca
Calá, ca bô tchorá más
Nha amor ê forte. carditá
E nha violão ê mas doce
q´ conte de seréna ta pintiá
Calá, ca bô tchorá más
Bo ê morna, morna ê bo
E s´ m perdebe mi era capaz
De perdê tine, perdê nha vida.

O embalo das palavras, não na voz de uma sereia mas nos acordes de uma morna. O trovador sente-se capaz de resolver os problemas da amada. Ele é o provedor (quiçá cavalheiro) ao pretender calar o choro da Cretcheu com música. A amada precisa de alegria. Qual ninfa necessita da sua presença. Sem ela, a amada, nada tem sentido.

Comparaçon (p. 68)

Bejôde um vez
Ca ta squeside
Boca de cretheu
Rosa cindide

Assim e liberdade
Cunchide êl
Ca qride ot cosa
Ê moda mel

O poeta reitera essa sua incessante obstinação por liberdade, presente em quase toda a obra Gritarei, berrarei, matarei. Não vou para Pasárgada, juntando agora o elemento mulher a esse desejo infinito de ser livre pois, para ele, a partir do momento que se beija quer-se fazer isso sempre. O mesmo acontece com a liberdade: conhecendo o seu sabor jamais se quer perder o seu gosto.

Escrever é, deveras, uma ato de libertação, por isso digo:

Da boca ou nada
Fios iguais a nadas erguidos pelo teu fado.
Rasgo-te a decência dos teus cabelos à procura das minhas mãos.
Mas tu ficas.
Dias desertos de vida alguma cantam a tua presença.
Mereces mais que uma boca fechada.
Atreve-te a buscar a minha saliva.
Nada?

01-10- 2020

Valódia Monteiro

Valódia Magdo Lima Monteiro (30 de agosto de 1981, Santo Antão – Cabo Verde). Licenciado em Estudos Cabo-Verdianos e Portugueses (2002-2007) e mestrando em Ensino de Língua Portuguesa – Língua Segunda / Língua Estrangeira. Desde 2007, é docente da disciplina de Língua Portuguesa. Participante ativo do Spoken Word Mindelo e outras atividades organizadas pela Associação txon-poesia. Dramaturgo/Produtor em: “Psycho”, “Noite”, “E dpos?”. Dramaturgo/Ator: “Sim ou Não?”; “Sente-se homem!”. Publicou poemas, crónicas e artigos de opinião, no Jornal “Artiletra”, no jornal “A semana”, na Revista “Dá Fala” e no sítio “Jovem Tudo”. Prepara-se para lançar, em novembro de 2020, a obra “O que faço com isto? – textos para teatro”.

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