CARTONAR É PRECISO

Inês Ramos


Nasceu este mês de Dezembro, não o “menino”, mas uma nova editora cartoneira, a Gongon Cartoneira. Uma pequena editora cartoneira que concebi quando ainda vivia em Cabo Verde, que me demorou quase dois anos a parir, e em que me proponho editar apenas autores cabo-verdianos quer escritores, quer ilustradores. 

A primeira edição é um livro de poemas para crianças, bilingue, em português/língua cabo-verdiana, da autoria do poeta José Luiz Tavares, natural do Tarrafal de Santiago, com ilustrações de Yuran Henrique, natural de São Vicente. O livro intitula-se «De Neve e de Bruma / Di Nevi i di Serason» e foi lançado no Centro Cultural Cabo Verde no passado dia 3 de Dezembro, com apresentação por Rita Taborda Duarte, poeta, crítica literária e professora. Os poemas deste livro, escritos há quase vinte anos para a sua filha Irina, então criança, que não são apenas para crianças, foram premiados em 2009 pelo Ministério da Educação do Brasil, no concurso “Literatura para Todos”.

“Tomando como motivo um tempo específico, o natal, recordando sobretudo os natais da sua infância, o autor faz, porém, o trânsito entre a fabulação e as peripécias existenciais, abordando situações e assuntos, os mais diversos, numa construção elaborada (não se deixando cair nas aldrabices, condescendências e melosidades, tão abundantes no género), onde a métrica e a rima conferem uma musicalidade, não de embalar, mas que acorda o leitor quer para as peculiaridades da linguagem poética, quer pela candência (por vezes de tom disfarçadamente filosófico) de alguns dos temas abordados.Escritos originalmente em português, os poemas ganharam notáveis versões em língua cabo-verdiana, o que o torna um objecto estético e didático único (no momento em que a língua cabo-verdiana é introduzida, ainda que de forma tímida, no ensino secundário em Cabo Verde), quer para os mais jovens, mas também para os mais crescidos.Neste natal escutem a voz do poeta, que se fez menino de novo para nos trazer a magia das palavras, e das imagens nas conseguidas recriações visuais de Yuran Henrique.”, lê-se na sinopse.

A apresentadora Rita Taborda Duarte refere que “(…) é obra dar corpo, forma, consistência, cor, aos poemas do José Luiz. No fundo, isto é edificar uma casa onde possa morar este livro de poesia tão bonito, em duas línguas, português e crioulo, que se transformam por sua vez numa língua outra, a língua da poesia, a língua da infância. É notável como um livro tão breve se transforma numa moradia com tantas assoalhadas, toda uma claridade, tons que aqui têm lugar, desde a ternura da memória, ao humor e à ironia, à reflexão filosófica, de uma profunda consciência social. (…) Este objecto não é apenas um livro, mas é uma metáfora. Uma metáfora cultural, mas também política. Não nos esqueçamos que se trata de um livro bilingue, em que duas línguas, o português transcrito a negro e o crioulo a azul, aparecem em par e em espelho. Duas línguas que se olham de frente e que se cruzam com os desenhos — as ilustrações do Yuran Henrique — que por sua vez falam a sua própria língua, uma língua única, inteira e universal. A imagem não conhece as fronteiras que por vezes, infelizmente, as palavras conhecem. Num traço finamente delineado, o azul e o amarelo acabam por se sobrepor, simbólicos, fazendo emergir um país feito de mar, de azul, de sol, que como os poemas dizem, traz a bruma e o vento (…)”.

O livro tem uma tiragem reduzida, pois é totalmente artesanal: o miolo é impresso em papel manteiga, a subcapa é impressa em cartolina, e a capa é feita com papelão reaproveitado, e cosida à mão. Inicialmente fiz uma tiragem de 50 exemplares, mas devido à quantidade de pedidos que entretanto surgiram, aumentei a tiragem para 100 exemplares, que também estão quase esgotados.

Quanto ao nome da editora, “Gongon Cartoneira”: eu procurava um nome peculiar e que tivesse alguma identificação com Cabo Verde. Foi quando descobri esta ave marinha endémica de Cabo Verde que não se reproduz em mais nenhum outro local do mundo, está em vias de extinção e comecei a investigar sobre ela. Aos poucos, fui-me afeiçoando a este pássaro, e a imaginá-lo a voar sobre as ilhas de Santo Antão, São Nicolau, Fogo… durante quase todo o ano, e a esconder-se nos buracos das zonas montanhosas e encostas íngremes apenas na época da reprodução – durante o resto do ano está continuamente no mar -, tentando escapar das várias ameaças que causaram uma diminuição importante da sua população. Uma luta pela sobrevivência, similar à luta dos cabo-verdianos. 

Deixo também uma pequena nota sobre isto das “editoras cartoneiras”: as editoras cartoneiras são pequenas editoras independentes que utilizam cartão reaproveitado na confecção artesanal das capas dos livros. Funcionam de forma autónoma e livre, cada uma com a sua singularidade, sendo um projecto estético e social. Tudo teve início na Argentina, em Buenos Aires, 2003, com a cooperativa Eloísa Cartonera, que começou a produzir livros com capas de cartão comprado a miúdos “cartoneiros” na via pública, encadernados e pintados à mão pelos mesmos jovens que deixam de ser “cartoneiros” quando entram neste projecto. A Eloísa Cartonera, hoje com mais de 200 títulos editados, é considerada a fundadora do “movimento cartoneiro” que rapidamente se espalhou por toda a América Latina, Europa, África, Ásia e Estados Unidos. Um movimento, de certa forma marginal, que tem por objectivo publicar livros de qualidade literária a baixo custo, promovendo a difusão e circulação da literatura fora dos circuitos editoriais convencionais.

A Gongon Cartoneira, para além de um projecto que me dá bastante prazer pelo factor artesanal e plástico, é também uma forma de divulgar os autores que mais aprecio – a escolha é totalmente minha e sou eu que os convido pessoalmente -, e, como disse, decidi editar apenas autores cabo-verdianos. Sou livre de editar quem eu quiser, não tenho ligações institucionais nenhumas, não recebo nem quero receber absolutamente apoio nenhum. É isso que me permite fazer o meu próprio projecto editorial alternativo e independente.

“Cartonar é preciso”, porque as editoras cartoneiras são a forma revolucionária de fazer chegar a literatura a toda a gente, de forma criativa, livre e a “baixo custo”. É um projecto cultural e social. Este universo cartoneiro permite e fomenta a realização de oficinas, onde se incentiva a escrita e a expressão plástica, e onde se procura mostrar que o livro é de todos e para todos, que não é um objecto sagrado e inalcançável. Tal como um fanzine, todos nós podemos escrever e produzir o nosso próprio livro. E isto é uma clara postura cultural, social e ideológica.

Deixo-vos, por fim, um poema e uma ilustração do livro:

NATAL DOS POETAS

Buscam nas palavras os secretos
modos de dizer amor. Até nesta
noite em que o mundo é festa
e luz, e os altos gritos dos netos

vão do sótão até à cave. Não são
magos ou adivinhos, esses que decifram
o mundo entre danças e canções. Acreditam,
porém, que o incessante vaivém da mão

pode edificar um novo mundo,
onde já não se mata e morre,
mas sob o azul mais profundo
a vida tenha enfim casa e torre.

NATAL DI PUETAS

Es ta buska maneras sekretu
di fla amor ku palavras. Ti nes noti
ki mundu e sabura ka pikinoti
i gritus rixu di netu

ta bai di kavi ti tetu. Es ka
algen ki ta dibinha, kes ki ta klarifika
mundu ku badju i kantiga. Mas es ta
kridita ma trabadju di mo ta idifika,

un bes bai, un novu mundu,
undi ki dja ka ta matadu i ta moredu,
mas baxu di azul prufundu
bida, enfin, ta mora la sakedu.

Ilustração: Yuran Henrique

Inês Ramos

Inês Ramos, portuguesa, activista cultural. Designer gráfica e ilustradora. Autora do blogue “porosidade eterea” criado em 2006 onde divulgou os poetas e os seus livros durante a última década. Editou em 2009 a antologia de poesia “Os Dias do Amor” com poemas de 365 autores. Tem participado em Encontros e Festivais Literários (em Portugal, Espanha e Cabo Verde). Editora de fanzines de poesia e banda desenhada. Participa regularmente em recitais de poesia e organiza uma Feira do Livro de Poesia e Banda Desenhada desde 2011 (em Portugal e Cabo Verde). Tem poemas dispersos em revistas literárias e antologias. Gongon Cartoneira é a sua micro-editora e tem por objectivo divulgar escritores e ilustradores cabo-verdianos.
gongoncartoneira@gmail.com

Fotografia: Daniel Mordzinski

José Luiz Tavares

José Luiz Tavares nasceu no Tarrafal no dia de Camões em 1967. Publicou dezanove livros, recebeu inúmeros prémios no estrangeiro e em Cabo Verde, e está traduzido para diversas línguas. Este é o primeiro de um conjunto de cinco livros infantis e dois juvenis escritos para a sua filha no início da década, mantendo-se todos inéditos, até agora.

Yuran Henrique

Yuran Henrique é natural de S. Vicente, Cabo Verde. A sua criação artística passa pela pintura, a ilustração e a ar­te urbana. Em 2017 expôs na mostra “Artes Visuais – Cabo Verde Contemporâneo 2016” a exposição “Reverso” (Palácio da Cultura Ildo Lobo), e participou na VIII Bienal de Jovens Criadores da CPLP no âmbito da XIX Bienal Internacional de Artes de Cerveira. Participou em várias residências artísticas (nacionais e internacionais). Desde 2018, é cartoonista do Expresso da Ilhas, jornal cabo-verdiano de âmbito nacional.

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