Falar é expressar apenas uma parte da verdade ou um regime de verdade e, bem sabemos, cada qual tem o seu próprio regime. Entendo, porém, que o tempo que vivemos requer, efetivamente, um cuidado redobrado com o que se faz, com o que se diz e o modo como se diz, sob pena de retirar a dimensão da contingência da balança discursiva e, aí, poder deslizar-se para mal-entendidos como para guerras, sempre inúteis, como aponta Sofia Frade na interpretação que faz de Helena e a guerra de Tróia.

A txon, revista de poesia e poética, nasceu em Cabo Verde, da impossibilidade de produzir o Spoken Word Mindelo em 2020, devido à pandemia. As sessões de spoken word – performance da palavra falada – são de participação aberta, nas quais se cultiva uma comunicação horizontal entre “presenças intensas” que vêm para partilhar textos, sem limites criativos. É esta dinâmica democratizada, experimental, que transpusemos como pudemos para a revista: leia-se a carta ao eu do futuro, escrita a 26 mãos pelo Coletivo Escrituras d’alma, e a poesia (dita) popular de Genésio Pontes.

Optámos pela edição online e gratuita, uma vez que nos possibilita publicar uma diversidade maior de poéticas, sobretudo mais visuais, tais como as do Daniel Lamas, Henrique Matos e Mário André. Além disso, abre espaço à participação de poetas e artistas de geografias luso-falantes mais distantes, em termos físicos, tais como a Olinda Beja, Hirondina Joshua, Guilherme Gontijo Flores – como tradutor da que é tida, hoje, como a primeira escritora da história, a poetisa Enheduana -, Tiago Alves Costa e Alfredo Ferreiro.

Desde o Nº 000, a revista tem-se reforçado enquanto recorte da polifonia de vozes poéticas – consonantes e dissonantes – que compõem as literaturas e culturas afro-luso-brasileiras, expressa na singularidade de cada conteúdo e na diferença vincada entre os modos e meios de criação – arte poética – de cada colaboração. Das poéticas que contêm linguagem metafórica mais complexa, como se pode ler nos poemas de Pedro Eiras, até às poéticas com marcas de oralidade mais evidentes, tal como se lê nos poemas de Samuel L. París, sther f. carrodeguas e Joana Ferrajão.

Repare o leitor ou a leitora, não apenas nessa diferença, que, de facto, existe e é aparentemente abismal – o mundo lá fora é mesmo assim, quer haja quem se defenda da realidade pelo mecanismo do recalcamento, como tão bem evidenciou Freud, quer quem aceite essa realidade -, mas, sobretudo, naquilo em que a txon se torna quando olhamos para a totalidade das partilhas publicadas em cada número. Manuel Santos e Márcia C. Brito, cabo-verdianos, e Senhor Balão, português, nenhum publicado em livro, nasceram em contextos linguísticos e culturais distintos e todos abordam o tema do amor.

Saliento, ainda, três aspetos comuns a todos os trabalhos: a língua portuguesa como forma de entendimento, a palavra enquanto modo principal de expressão e a própria necessidade de se expressar. Vera Duarte, reconhecida como a primeira poetisa renomada de Cabo Verde, manifesta com clareza estas características na sua poética, cuja primeira obra, Amanhã Amadrugada, celebra 30 anos em 2023. Por um lado, pretendemos que a revista coloque a nu a voz, enquanto dimensão subjetiva – e inalienável – da produção poética, como da vida: o tema e/ou dedicatória à família em Luís A. Fernandes e Samuel F. Pimenta, o tema da violação sexual em Manuella Bezerra de Melo e a resposta a discursos quotidianos em Manuel Almeida Freire.

Por outro lado, propomos o confronto construtivo dessas vozes que, a nosso ver, se afigura fundamental para catalisar partilha de conhecimentos, o que nos parece ser via para a superação de estereótipos e força para um espírito mais dialético, cosmopolita e democrático. João Miranda reflete sobre formas pelas quais poderemos, enquanto sociedade, mitigar estratégias de ataque usadas nos discursos políticos em Portugal, sobretudo na propaganda populista, e, nesta linha, o Coletivo Chuǎng faz-nos chegar da China a primeira análise crítica documentada sobre os discursos governamentais em torno da pandemia da Covid-19, refletindo sobre o impacto negativo do capitalismo globalizado.

O presente número da revista reforça as versões em kriol, variante da língua cabo-verdiana. Pela primeira vez, todos os poemas estão traduzidos para kriol, o que representa uma aproximação ao bilinguismo da vida quotidiana em Cabo Verde. É com base nas aprendizagens da língua e cultura dos cabo-verdianos que procuro, no meu ensaio, lançar sementes sobre o sentimento de pertença à comunidade da língua. Inês Ramos traça, igualmente, pontes entre Cabo Verde e Portugal, apresentando a sua nova editora Gongon Cartoneira e o primeiro livro editado, da autoria de José Luiz Tavares com ilustração de Yuran Henrique.

Ao leitor ou leitora, o único requisito para aceder à revista é dispor de internet, esteja em que parte do mundo estiver, e, a quem lê, desejo leituras inspiradoras.

José Oliveira Pinto

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