A arbitragem dos ponteiros 

Ainda não tinha descoberto 
que o silêncio não se inventa. 
Ainda eu não estava perto 
da palavra que se alimenta 
dos cambiantes de um beijo,
quando soube que o caminho 
me exigia a corrida sem desejo.
Com um seco e resoluto estrondo
se impôs a ditadura das pernas. 
O que posso ser, se não respondo?
Corri. Como todas as coisas eternas, 
os mancos, os outros. Como quem vê. 
Corri. Cheirava a pólvora, a fumo, 
a livro novo que ninguém lê. 
Sem dúvida nem prazer, assumo, 
na mira dessa mesma sombra, 
que nunca se soube descrever.
Fugi. Não há golpe mais audaz 
para o corpo leve, e desconfiado 
de que algo lhe corre sempre atrás.
Com o sabor da conspiração 
em cada céu que trago calçado,
fugi. Sem face nem peito. Com razão. 
Ouvi o tiro, fugi, fingi-me atleta,
deitei-me no colo da corrida 
à espera de tropeçar na meta, 
e deslizar até ao imaculado. 
A dúvida não nasce prematura, 
ela, enfim, passou-me ao lado. 

Arbitragem de ponteire

Inda ka tinha deskoberte
ke silênsio no ke te inventel.
Inda mi ke tava perte
de kel palavra k gent t alimentá
de kambiantes dum bêje,
konde um sube ke kamim
te exigime um kurrida sim deseje.
Moda um seke e resolute estronde
gent impô kel ditadura de pernas.
Ukê kum podê ser, se mim de respondê?
Um korrê. Moda tude kosa eterna,
kej monke, kej ote. Moda kem te oiá.
Um korrê. Tava txerê a pólvora, a fume,
a livre nove ke ninguém te alê.
Sim dúvida nem prazer, um te assumi,
na mira dess mésma sombra,
ke nunka um sube deskrevê.
Um fugi. Ka tem golpe maj audaz
pá korpe lêve, e deskonfiode
de ke algum kosa tava korrê sempre atrás del.
kum sabor de konspirassão
ne kada séu kum te traze kalssode,
um fugi. Sim kara nem peite. Ke razão.
Um uvi kel tire, um fugi,um fingi ser atleta,
um detá ne ragosse dum kurrida
te esperá tropessá ne meta,
e deslizá até o imakulode.
Dúvida ka te najssê premature,
ela, enfim, pésse-me ne lóde.

De passagem 

Vou tateando todas as paredes,
aluguer de eternidades e sopros,
que não desmentem nem agarro,
enquanto te pergunto um nome.
Sim, quando o pó que nunca varro
já não me contém nem expulsa,
viro-me para ti, e não te reconheço
os acabamentos, nem a dor avulsa
desses braços estendidos, à mercê
de quem está sempre quase a chegar. 
Perdoa-me, que o chão é o que se crê, 
e o ateu, bem sabes, é alérgico à telha. 
Perdoa, que o telhado é inimigo da noite 
e o sono precisa de uma centelha.
Perdoa o riso desbragado dos pedintes, 
que a partida é o ventre da epopeia,
e não há tempo para parir ou ser ouvinte. 
Não invoques essa minha infância,
hoje não posso ser nem saber estar.
Diz-me, é um caso sério de arrogância? 

De passagem

Um te bê tateá tude parede,
aluguer de eternidade e sopre,
ke ka te desminti nem agarrá,
enkuante te perguntá um nome.
Sim, konde kel pó ke nunka um te varrê
já ka te contê-me nem expulsá-me,
um te vrá pa bô, e um ke te rekonhesse-be
kej akabamente, nem kel dor avulse
dex brosse estendide, à mercê
de kem tá sempre kuase te txegá.
Perdoé-me, ke txon é uke nô krê,
e kel ateu, bem k´bô sabê, é alérgiko à telha.
Perdoá, ke telhode é inimige de noite 
e sone presisá de um sentelha.
Perdoá kel rise desbragode de kej mendingue,
ke a partida é ventre de kel epopeia,
e ka tem tempe pa pari ou ser ouvinte.
Ka bô invoká ess nhê infânsia,
hoje mi ka te podê ser nem sabê estar.
Dzê-me, é um kase sério de arrogânsia?

Karapaça

Para a República dos Kágados 

Assim que atrevi a porta, 
desconfiei de ti, meu amor. 
Não há hino sem suspeita, 
nem revolução sem cautela.
Desconfiei de quantos tijolos,
braços e bocas exigiu a empreita,
do sol estirado só naquela janela,
dos comícios e gozos das paredes,
dos olhos que não me cobram, 
após tanto prato e tanto olhar.
Desconfiei de ti, meu amor, 
como dos elogios de uma mãe,
como de um barco por estrear, 
uma leitura de sina ou de Camões,
um espelho onde não desvendo 
a bandeira que teimo em vender.
Não devo nem posso negá-lo: 
já soube estar ainda menos, 
mas nunca aprendi a ser. 
Haverá uma casa sem luta? 
Fiz birra no teu regaço, sim, 
como se fosse a primeira vez. 
Dona de dúvida e de dívida, 
besta de princípios sem fins,
protagonista da minha altivez, 
quis-te como chão e horizonte. 
E só quem te vive, meu amor, 
fora dos recantos da madrugada,
sabe que nunca serás resposta, 
e descobre, por fim, o privilégio 
de ser bloco na tua fachada. 
Ao almoço, ao erguer o copo,
cravos postos nas botas, 
botas erguidas na mesa, 
somos uma breve construção, 
só mais um grito de amor
e sempre menos uma certeza. 

Karapasa

Pa República de Kágados

Assim kum atrevê ne porta,
um deskonfiá de bô, nhe amor.
Ka tem hine sim suspeita,
nem revolussão sim kautela.
Um deskonfiá de tonte tijole,
brosse e boka exigi ess impreita,
de sôl estirode só nakel janela,
de kumísie e goze d´kej parede,
de kej oi ke ka te cobra-me,
depus de tonte prote e tonte olhar.
Um deskonfiá de bô, nhe amor,
moda de elogios dum mãe,
moda dum barke por estreá,
um leitura de sina ou de Kamões,
um espelhe ondê min de desvende
kel bandera kum te teimá em vendê.
Mim ke devê nem um podê negá-l:
já-me fui maj bróbe,
má nunka um prendê a ser.
Há de ter um kasa sim luta?
Um fazê birra ne bô regoçe, sim,
moda se fosse primer vez.
Dona de dúvida e de dívida,
bésta de prinsípie sim fins,
protagonista de nhe altivez,
Um kris bô moda txon e horizonte.
E só kem te vive-b, nha amor,
fora de rekonte d´madrugada,
sabê ke nunka bo tite bái ser resposta,
e el te deskubrí, por fim, kel privilégie
de ser bloke ne bô faxada.
Ne almoço, te levantá kope,
krave pustes ne bota,
bota erguide ne mêsa,
nôj é um breve konstrusão,
só mas um grite de amor
e sempre menos um serteza.

Joana Ferrajão

Joana Ferrajão, 2001, Vila Real. Começou a trabalhar na área do teatro, envolvendo-se na criação e na produção de Je ne sais quoi (2020) e Entre Pedros e Pedras (2021). Licenciada em Estudos Artísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, no âmbito da qual integrou o projeto Ouvir Vozes (2021), da Marionet Teatro, e O Grande Museu da Consciência de Elon Musk (2022), da Visões Úteis. Escreveu o livro de poesia À Luz dos Pirilampos (2021), publicado pela Poética, e conta com participações no jornal O Palhinhas. Atualmente, frequenta o Mestrado de Literatura de Língua Portuguesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, e trabalha sobretudo como atriz e dramaturga.

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