A minha avó morreu em Opatija

a minha avó morreu em Opatija
logo ela que nunca saiu de Portugal
nem quando nasceu em Angola
nem quando emigrou.

a minha avó morreu eu não vi
não posso confirmar.

morreu com um telefonema do meu pai
em que falámos dez segundos
e ficámos dois minutos em silêncio
a pagar roaming.

o que o meu pai não me disse
é que o avô também tinha morrido nesse dia
mas é natural nenhum deles reparou
até meses mais tarde.

os meus avós morreram em Opatija
logo eles que passaram tantas fronteiras
sem nunca deixarem Portugal.

Nha avó morrê ne Opatija

Nha avó morrê ne Opatija
lôgue el ke nunka saí de Portugal
nem konde el najsê ne Angola
nem konde el emigrá.

nha avó morrê mim ke oiá
mim ke podê konfirmá.

el morrê kum telefonema de nhe pai
em ke nô falá dez segunde
e nô fka doj minute em silênsie
te pagá roaming.

o ke nhe pai ka dze-me
é ke nhe avô também morrê nesse dia
mas é natural nenhum dej repará
até uns mêj mas tarde.

nhes avô morrê ne Opatija
lôgue ej ke passá tonte frontera
sim nunka saí de Portugal.

Postal de Samarcanda

trouxe para casa um postal
abandonado em cima 
das caixas de correio do prédio 
sítio do correio enjeitado. 

ninguém lhe pegou durante dias 
a ninguém intrigou 
os seis selos em cirílico 
onde só entendia O’zbekistan
os três carimbos ilegíveis
o tom sépia do antigamente.

alguém desejava a alguém 
um feliz dia das madrinhas
e uma bela páscoa
mas ninguém quis saber. 

fica a imagem de uma praça gasta 
vincada pelas dobras da viagem
desbotada pelos dias em trânsito
inconsequente como um peixe de aquário. 

a páscoa foi há três semanas 
mas o postal não chegou atrasado
nunca se atrasa quem 
não chega ao destino.

Postal de Samarcanda

um trazê pa kasa um postal
lorgode d´sima
duns kaixa de kurrei dess prédie
lugar de kel korrei enjeitode.

ninguém pegue-l durante dias
a ninguém intrigá
kej seis sele em siríliko
ondê gent só tava intendê O’zbekistan
kej três carimbe ilegível
kel tom sépia do antigamente.

alguém tava desejá a alguém
um feliz dia de médrinha
e um bela páskoa
má ninguém krij sabê.

te fka kel imagem duma prassa goste
vinkode pe dobras de viagem
desbotode pe dias em trânsito
inkonsekuente moda um pexe de akuárie.

páskoa foi há três semana
má kel postal ka txgá atrasode
nunka te atrasá kem
ka txgá ne sê destine.

As mãos da minha mãe

1.
só há dias reparei que as mãos 
da minha mãe se transformaram 
nas da minha avó não sei 

não sei quando aconteceu 
até chegar àquela pele fina 
dedos quebradiços 
deve ter levado anos 

mas para mim ocorreu assim 
num segundo 
um dia mãos de mãe 
e no seguinte mãos de avó 

inesperada borboleta


2.
a avó tinha essas mãos 
todas tão brancas 
só riscadas pelo azul 
das veias ribeiros 
debaixo da pele 

tão fina que translúcida 
manchada pelos anos 
uma pele tão gélida a olho nu 
que não deixava antever 
o toque de linho daqueles dedos


3.
nesse dia quando olhei 
os olhos da minha mãe 
já não a vi só a ela 

era várias gerações 
era a avó dela e a avó da avó dela
pessoas que nunca conheci 
mas que via agora ali perfeitamente 

um misto de mãe e avó 
que saudades da avó


4.
acho que foi um pedido da minha mãe 
saúdo a subtileza um aviso 
de que estava pronta para ser avó 

como não haveria de estar pronta 
se já tinha aquelas mãos 

Kej mon de nha mãe

1.
só há dias um espiá ke kej mon 
de nhá mãe tava transformode 
ne kej de nha avó mim ke sabê 

mim ke sabê konde ke iss kuntsê
atê txgá kel pele fine 
déd kebradisse
devê ter levod uns bons one 

ma pe mim kuntsê assim 
num segunde 
um dia mom de mãe 
e ne seguinte mom de avó 

inesperada borboléta


2.
nhe avó tinha ex mom
tude tão bronk 
só riskóde pe azul 
de kej veia ribeire 
d´boxe de pele 

tão fine ke translússda 
mantxode pe temp 
um pele tão gélida a oi nú 
kel ka tava txá antevê 
kel toke de linhe da kej déde


3.
nesse dia kuonde um oiá 
kej oi de nha mãe 
já-me ke oiá só ela 

era txeu gerassão 
era sê avó e avó de sê avó 
pessoas ke nunka um konxe 
má kum oiá agora lá perfeitamente 

um miste de mãe e avó 
ke sodade de nha avó


4.
um te otxa ke foi um pedide de nhá mãe 
saúdo kel subtiléza um avise 
de ke jal tava pront pa ser avó 

kome kel não havia de estod pronte
se jáj tinha kej mom lá

Luís A. Fernandes

Luís A. Fernandes nasceu em 1989. Publicou poemas dispersos na revista Ler, no blog Gazeta de Poesia Inédita, na plataforma online A Bacana e nas revistas Eufeme e Nervo.

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