meia de leite
Sentiu um arranhão áspero, mas também suave no seu rosto. O sonho não era dos melhores, contou-me, por isto acordar pareceu-lhe bem. Fidel estava à sua frente, tão cinza como sempre. Os seus olhos azuis eram sedutores. Bem sabia que este lambia a sua cara porque desejava recompor o seu prato de ração, fez como fazem os gatos: pedem sem rodeios, incomodam sem o receio humano de não serem amados por isto, com as suas belezas e incômodos. Fidel tinha a certeza de que banalidades como a interrupção do sono não mudariam um sentimento de afeto profundo. Tinha as certezas que faltavam à Isabella, que já me contou o quanto aprende com ele. Beijou-me a testa e levantou-se. Sonolenta, vi-a caminhar até o saco de ração. Proveu a tigela, sentou-se à beira. Descabelada, vestia um pijama de flanela com motivos infantis, apreciou a fome de Fidel enquanto tirou a camisola por uns instantes. Pôs os seios à mostra para o sol. Condiziam: seios não tão jovens para uma mulher não tão jovem, seios não tão velhos para uma mulher não tão velha. Estava satisfeita. Por acaso, a luz era um evidente remédio, há de aproveitá-la.
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Quando Isabela entrou na minha vida pareceu diferente desta que é agora. Sem juízo de valor, apenas diferente. Mantenho-me ao seu lado pela sua impressionante capacidade de se modificar a si, de mostrar fragilidade, da própria reinvenção, como quem cria todo dia um novo personagem. Não é do tipo que se arrepende, só arremessa o corpo. Quando desiste, avisa, não desperdiça tempo. Mas como fazer uma mulher desta estatura imensa ver-se tão enorme quando ela só se consegue percecionar pequenina?
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Ela não gosta quando lhe chamam de guerreira, diz que não foi feita uma consulta para lhe dar esta condição, que nunca pediu esta patente. Mas o que ela não aceita é que há certas coisas que nós somos ainda que odiemos sê-lo. Enquanto o mundo corre atrás das suas patentes, ela rejeita-as. Só queria não as ter, só queria não precisar de lutar, queria uma vida banal, sem armaduras nem capacetes, sem escudos nem batalhas. O cansaço vem-lhe todos os dias às 21h. Apaga-se ao meu lado como quem confia, deixando à mostra o seu flanco para o inimigo.
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Um dia ensolarado, vi-a passar a pé com uma sacola. Tentei fazer com que ela percebesse que eu a tinha visto. Caminhava como quem se defende; atenta, erguida, ereta. Não tinha tempo para plenitudes, contemplações. Na cidade, em setembro, a árvore de um fruto especial florava e despejava fragmentos violeta no chão das ruas do bairro. Avistei-a a dobrar a esquina embaixo de um jambeiro, em cima de um tapete que, sem fim, era um guia, um caminho a ser seguido na trilha. Decidi esperar. Não sabia muito bem o que esperava. Supus ou convenci-me que ela apareceria novamente. Em alguns dias até me esqueci, pareceu-me delírio. Cheguei a duvidar que ela existisse. Algumas situações da vida podem parecer alucinatórias. Talvez eu tenha tentado inventar uma mulher. Nem saberia explicar o que poderia ter de especial alguém que vi passar uma vez na rua de casa, mas as nossas abstrações são o nosso traço mais bonito, alguém se torna magnífico por aquilo que nem mesmo se pode ver. Pude ler no seu andar, o de Isabella, o seu propósito de vida, ou deduzir, ou especular. Não era possível saber muito sobre ela, mas era possível desvendar seu propósito. Era possível que tivéssemos propósitos similares, acreditei.
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Hoje Fidel veio lamber-me a mim. Eu já estava um pouco acordado e pela manhã todo o gato percebe quando o seu corpo já está próximo de despertar. O facto é que Fidel me lambeu uma vez só até eu abrir os meus olhos. Levantei mas fui primeiro à casa de banho. De pé, urinei a minha sensação de gozo matinal. Depois alcancei o saco de ração, encostei-me na parede e despejei na tigela. Terminei o meu sonho ali mesmo, de pé ao lado do Fidel, que não gosta de comer sozinho pela manhã. Isabella seguiu deitada. Voltei até à porta do quarto e de pé olhei-a. Dormia com a barriga para cima e as mãos sobre as coxas. Não estava totalmente entregue. Isabella vivia à espera da próxima guerra. Ela não queria, mas sabia que viria porque sempre chegava a hora.
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Quando tinha nove anos, Dona Carmen casou-se outra vez. O pai biológico de Isabella é um vagabundo aproveitador de mulheres. Até que um dia dona Carmen mandou-o embora, Isabella tinha menos do que dois anos. Ficou sozinha até conhecer Gonçalo, tão gentil, carinhoso, atencioso com a sua filha, que na altura necessitava de uma referência paterna. Eis que chegou a hora, aos nove anos Isabella foi violada pela primeira vez, dentro de casa, em cima de seus lençóis cor-de-rosa. Aconteceu como um ritual de sacrifício. Assim que a Dona Carmen comentou que Isabella tinha ganho a sua primeira menstruação, ele esperou uma semana e, numa oportunidade sozinho com a menina, trancou-a e disse que agora ela já era uma mulher. Um dia, bebeu seis copos de vodca explicou os detalhes. Ele segurou-a de costas e a violou-a pela vagina e pelo ânus, com o pênis e outro objeto que ela ainda hoje não sabe dizer qual foi. Tinha os olhos fechados, o maxilar latejava dormente de tanto que apertava os dentes. Quando se sente desprotegida, até hoje lhe doem os maxilares. Num momento, virou-a de frente para ejacular. Consumado, espalhou o seu gozo com as mãos por onde deveriam estar os seus peitos, eram uma amostra quase impercetível deles, e pela cara, enfiando os seus dedos sujos na sua boca pequena e roçando-os na língua. Pronto, agora Isabella era mulher. Desde então para todo o sempre, ser mulher foi sinônimo de dor, desespero, imundice, asco, ódio.
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Vivo na Rua Amorosa, na esquina há uma padaria e era lá que estava, a tomar café sozinho numa mesa para quatro pessoas, quando avistei uma mulher de costas. Era só uma mulher que nunca tinha visto, mas não exatamente. Na verdade, não havia reconhecido Isabella, de quem eu ainda não sabia o nome. Tinha cortado os cabelos, e do ângulo que avistei estava magra demais para ser a mulher que vi passar debaixo do jambeiro na esquina da Rua. Ou talvez já a tivesse esquecido, haviam passado meses. Sete, oito¿ Mas o esquecimento foi embora tão depressa ela virou o corpo para o lado direito, onde estava posicionada minha mesa. Não vou dizer que parecia cena de propaganda de shampoo porque talvez eu tenha inventado isto para mim mesmo como uma criança inventa os seus monstros no armário. Mas sim, ela virou-se quase em câmera lenta e piscou os olhos, os cabelos moveram-se devagar, esvoaçantes na minha direção. E ainda que pareça ridículo, foi nessa descrição patética de romance que os nossos olhos se encontraram pela primeira vez. Poderia dizer que ela estava muito sedutora, mas a verdade é que ela nem é sedutora, ao menos não assim, à primeira vista. Eu vi que encontraram os olhos, mas ela jamais admitiria. Isabella não olha nos olhos dos desconhecidos, e muitas vezes não olha também dos conhecidos. De repente, ela volta-se imediatamente para o outro lado e senta-se no balcão de costas pra mim, de frente para a porta. A não ser que eu entrasse e saísse de novo da padaria poderia cruzar novamente o seu olhar. Isabella sabe defender-se. Segui de longe a observá-la e tentei não invadir o seu espaço. Seu pedido, pão com manteiga e uma meia de leite ‘com mais café do que leite’, ouvi-a dizer. A cadeira ao seu lado no balcão ficou vaga e sentei-me devagar com a cautela de quem joga um jogo desconhecido. Ela seguia de costas, calça jeans, camisa branca, os chinelos e os cabelos emaranhados decretavam o descuido de quem sai de casa para tomar um café na padaria e não deseja ser incomodado. Certamente morava próximo dali. Arrisquei uma conversa com o empregado sobre a troca da marca do café. Disse que o novo grão era muito amargo. Ponto. Ela virou-se para discordar: “Gosto deste, não troquem!”.
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Num domingo de sol Isabella decidiu ir à praia. Enquanto trocava de roupa no quarto, o telefone de casa tocou. Atendi e Dona Carmem anunciou:
— Avise-a, por gentileza, que o pai morreu ontem à noite.
— O que aconteceu?, perguntei assustado.
— Matou-se enforcado.
Isabella parou à beira do corredor. Pôde ver os meus olhos arregalados, telefone na mão, o silêncio.
— Meu pai morreu?
— Sim.
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Após consumar o ato, Gonçalo mandara Isabella ao banho. Ela esfregou o seu corpo até deixar parte dos braços com ferimentos. A sua vagina de criança estava ferida, o seu ânus sangrava. Colocou um absorvente, vestiu o pijama de flanela com motivos infantis, deitou-se no tapete ao lado da cama e dormiu exausta, como um desmaio. Quando Dona Carmem chegou Isabella já estava recolhida. Nada parecia fora do comum, era uma noite qualquer, mas não era. Daquele dia em diante, Gonçalo violou Isabella todas as semanas durante seis anos interruptos.
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Depois daquele dia passei a frequentar a padaria diariamente na intenção de reencontrar Isabella. Cheguei a vê-la várias outras vezes por lá, cumprimentava-a como um vizinho educado. Um balançar de cabeça, uma mão suavemente levantada ao longe. Sem sorrisos ou insinuações. Ela andava como anda um trovão, pisadela forte, densa. Mulheres assim não aceitam serem surpreendidas. Depois de algumas semanas, não estou certo de quantas, pedi um pão na chapa e sentei-me ao balcão. O local estava cheio, diferente dos outros dias, posicionei o flanco de costas para a porta. Logo ficou vago o banco ao meu lado, ela sentou-se. Não levantei a cabeça, mas reconheci as sapatilhas. Mantive os olhos no telemóvel. O meu pão chegou, pedi um refrigerante de limão.
— Não gostas mesmo do novo grão?
Era ela, falava comigo pela primeira vez.
— Não, é amargo demais.
— Não podemos iludir-nos que a vida é doce.
Eu sorri um sorriso médio. Ela sorriu pequeno. Ela sorriu um sorriso que quase não se notava, mas pude ver que estava lá.
* * *
Quando o pai de Isabella se matou, ela não esboçou muita reação. Voltou para o quarto, tirou o maiô, vestiu o pijama de flanela com motivos infantis. Deitou-se na cama com um livro qualquer. Fui até sua beira e perguntei-lhe se havia algo que pudesse fazer. Perguntou-me se poderia ligar para o seu irmão para saber do enterro. O pai de Isabella achava-se esperto, mas era um canalha. Passou seis anos com Dona Carmem explorando-a diariamente. Dormia até meio dia todos os dias, não procurava emprego, não fazia comida, não lavava uma chávena. Às vezes fingia sair para procurar emprego e sentava-se no bar para passar o tempo até poder voltar para casa e passar o resto do dia a ver futebol na televisão. Era um embuste, um encosto, mas quando Isabella pensava nele tinha-lhe afeto, como quem agradece por nunca a ter violado. Ele perto de Gonçalo tinha-lhe ternura de pai, e no fundo talvez ela acreditasse que nunca tivesse acontecido caso ele não tivesse ido embora. Mas quando Dona Carmem o mandou embora, em menos de seis meses ele arranjou outra esposa, em menos de um ano ela estava grávida. Em menos de 10 anos ele estava na quarta esposa grávida. Isabella tinha três irmãos, um de cada esposa. Adélio, três anos mais jovem que ela, Priscila, a do meio, e Ana, uma miúda. Foi para o Adélio que telefonei quando o Patrício morreu.
* * *
Passamos semanas a encontrar-nos na padaria. Sentávamo-nos nos mesmos bancos e conversávamos sobre pão, café, sobre o carro do ovo que passava às quartas-feiras pra acordar a vizinhança. Nesta altura eu já sabia o seu nome, já tinha podido ver parte dos seus dentes e percebido que havia doçura escondida no meio daquele peso todo.
— Percebi que já não tomas mais café.
— O café é amargo, Isabella.
— Eu gosto do amargo.
— Eu gosto de evitar o amargo.
— Tenho café de outra marca em casa. Queres?
Subimos as escadas, três lances. Entramos devagar, em silêncio. Sentei-me no sofá cor de telha. Havia uma janela com luz, plantas com flores, uma estante com livros, havia um gato.
— Como se chama?
— Fidel.
O Fidel ronronou, esfregou-se na sola do meu sapato. Isabella trouxe o café. Bebemos em silêncio.
— Por favor, se me quiseres tocar pergunta-me primeiro se podes.
— Posso tocar no teu rosto, Isabella?
— Sim. Sou mulher desde os meus nove anos.

Manuella Bezerra de Melo
Manuella Bezerra de Melo é autora de Pés Pequenos pra Tanto Corpo (Urutau, 2019), Pra que roam os cães nessa hecatombe (Macabea, 2020) e Um Fado Atlântico (Urutau, 2022) e organizou a coleção de antologias VOLTA Para Tua Terra (Urutau, 2021; 2022). Graduada em jornalismo com especialização em Literatura Brasileira, mestre em Teoria da Literatura e Literaturas Lusófonas e frequenta o Programa Doutoral em Modernidades Comparadas da Universidade do Minho. “Nova poesia brasileira: território, disputa e resistência” é o seu primeiro livro de ensaio, no prelo, pela editora Zouk.