A birra
Antes de remoer ser destino,
Dentes já não tinha para o fazer
Animo na presença do vazio
Sim
A raiva é tão grande quanto a paixão
Cresce tanto quanto a inércia
Descontextualizado
No entanto sou feliz só hoje, só ontem,
não amanhã, porque sou generosa
Discurso e berro inteligentemente
contra a parede de betão
À morte só peço leveza e calmaria
Porque meu berro é inaudível
e aprendi com os animais a esconder
a expressão do medo
E sim, renuncio à sobrevivência
Sim
Renuncio à ilusão
Sim, abraço o prazer da alegria dionisíaca
Ora dá-me mais vinho do porto e grogue
Sim, abraço o tédio de domingo
e leio auto-ajuda (não sejas preconceituoso)
debaixo da laranjeira desflorada
(já pensavas que eu ia dizer laranjeira em flor, previsível)
Descontextualizado outra vez, desculpa
Acreditamos na inocência do culpado.
Defendemos afetuosamente nossos crimes
Somos apegados
Somos os censores de nós e os carrascos dos nossos.
Os abutres empanturrados e esfomeados
fazer o quê, temos fome!
Cada palavra não é suficiente
O indizível não se diz
Muito menos se escreve
Tanto que nem entendes o que digo
Incansável é o indizível
É voz É pele Pensamento Pureza Imprópria
O indizível agarra-se teimoso à garganta,
não o conseguimos libertar, por isso pintamos,
escrevemos, rezamos e quando isso não chega
esmagamos crânios ou vamos às compras
porque é para isso que o dinheiro serve
Minha verdade é não ter verdade nenhuma
Não saber viver é minha sina e encanto
O tempo passa e pesa a vida
Sou o lado negro da escuridão
Aquele que não pertence ao mundo
Aquele que afoga seu salvador
Tenho pés, mãos e desassossego
Tenho demónios terríveis e anjos mortos.
Sim meu demónio matou meu anjinho de ombro.
Meu deus, arcanjos e serafins,
é tão grande o quero gritar
Que inquietude que tortura libertadora
para o bem e para o mal e posso escolher
segundo meu sábio capricho
A loucura fica logo ali, a dez metros de distância,
a um gesto e meia tempestade de se manifestar
tomar seu lugar e decidir ficar
Por enquanto só amo
Mesmo assim ele diz:
Não está tudo dito!
Birra
Antej de remoe ser destine,
Dente ja’m k tinha
M t animá ne presensa de vazio
Sim
Raiva é tão grende kuante paixão
Te kresce tont kuante inércia
Fora de kontext
N’intonte mi é fliz sô hoje, sô onte,
não mnhã, porque mi é generosa
M t diskursá e berrá
inteligentemente
P parede de betume
P morte m te pdi lévéza e kelmária
Porke nhe berre é inaudível
M prendé k bitxe a eskondê
nhe expressom de méde
E sim, m t renega sobrevivênsia
Sim
Renenega ilusom
Sim, m t brassá kel prazer d’alegria dioniska
Ora dé-me maj vim d’porte ma grogue
Sim, m t brassá kel infod de dming
e m t alê autoajuda (txá d ser prekonseituose)
d’boxe dum laranjera desflorod
(já bo tava t pensá ke m tava t bai dze laranjera em flor, previsível)
Fara de kontexte ote vez, deskulpa
No t kreditá ne inosênsia dum kulpode.
No t defende afetuosamente noj krime
No é apegod
No é sensor de noj’méme e korrosk d kej nosse.
Abutre empanturod e esfomiod fazê o kê,
no tem fome!
Kada palavra en’ê sufissiente
Kel kê indizível gente en de dzel
Mut menos skrêvel
Tont ke bo’n de nem intendê ksi kum tt dse
Insansável ê o indizível
Ê voz Ê pêle Pensamente Puréza Imprópria
O indizível t garrá teimose ne garganta,
nô ke te kunsgui libertal, pôr isse no t pintá,
eskrevê, rezá e kond isse en d txegá
no te esmagá uns krânie ô no te bê pe kompra
Mod é pe isse ke denher te sirvi
Nhe verdede é não ter verdede nenhum
Ká sabê vivê é nhe sina e enkante
Temp t passa e vida t pesá
Mi é lod négre d eskuridão
Kele ke’n d pertensê a ess mund
Kele ek t foga se salvador
M tem pê, mom e desassossegue
M tem uns demónie terríveis e uns anje morte.
Sim nhe demone matá nhe anji d’ombre.
Ô deus, arcanjos e serafins,
é tão grande keme kre gritá
Ke inkietude ke tortura libertador
p bêm e pa mal e m pode eskolhê
segundo nhê sábio kaprixe
Lokura te fka logue lá, a dez metre de distânsia,
a um geste e meia tempestade de manifestá
tmá sê lugar e dessidi fka
Por inkuant m te sô amá
Mesm assim ele t dse:
Ka te tude dsid!

Márcia C. Brito
Márcia C. Brito nasceu em Cabo Verde, em 1997, é educadora artística, performer e intérprete. Co-fundadora da Associação txon-poesia. É mestranda em Teatro pela Universidade de Évora, Portugal. Fez direção da performance “Reviro”, produção da Associação txon-poesia, no âmbito do FITAP – IX Festival Internacional de Teatro e Artes Performativas em 2022. Foi intérprete em TRANSMISSÃO Ciclo de Teatro do Imaginário (teatro radiofónico entre Cabo Verde e Portugal) em 2020 e no espetáculo “Ela pediu-me ajuda e eu tirei-lhe uma fotografia”, no Março Mês do Teatro, em 2019 (Cabo Verde).