Todas as histórias têm o seu início e esta tem a sua génese na edição, por parte do jornal Expresso, da colecção, em oito volumes, “Obra essencial de Fernando Pessoa”, cujo último volume exibe como título “Contos Policiais”, com coordenação e prefácio de Pedro Mexia.

Confesso, do que tinha lido e ouvido de Fernando Pessoa, o meu relativo desconhecimento da sua obra de carácter policial. Era estranho porque a sua incursão no género se tinha iniciado quando era jovem ainda, por terras da África do Sul.

Na primeira abordagem, fiquei a conhecer a influência que os grandes mestres da literatura policial mundial tiveram em Pessoa: Edgar Alan Poe e Conan Doyle ou Arthur Morrison, entre outros autores. Este meu desconhecimento terá até alguma desculpa porque o próprio Fernando Pessoa confessava (1914?):

Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixe que eu passe, conto por melhor ano aquelas em a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo. Um volume de um destes autores, um cigarro de 45 ao pacote, a ideia de uma chávena de café- trindade cujo ser- uma é o conjugar a felicidade para mim- resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade é que não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e estéticos no meio europeu actual.

Talvez para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter estes por meus autores predilectos- e de quarto de cama, mas o eu confessar que nesta conta pessoal assim os tenho.

Foi deste modo que tive o meu primeiro encontro com os contos “policiários”, como Fernando Pessoa os caracterizava. As novelas policiárias, mesmo seguindo as linhas dos grandes policiais que Fernando Pessoa leu, cujos autores admirava, tinham uma característica comum: raramente, no seu final, o criminoso, depois de descoberto, acabava preso. Abílio Quaresma tinha cumprido a sua tarefa: decifrada a charada, mais nada lhe interessava. Tal facto teve sobre mim uma enorme atracção, redobrando o meu entusiasmo e curiosidade.   

Desde então, muitas coisas fui lendo, tomando conhecimento de temáticas complexas e estimulantes; a descoberta do universo do policial pessoano e as suas curiosidades; encontrei a forma de conhecer outras pessoas, outros locais, autores que se especializaram em temas pessoanos. Foram as leituras de Ana Maria Freitas, a visita à Casa Fernando Pessoa e principalmente o contacto com Ricardo Belo de Morais (biblioteca da Casa Fernando Pessoa), um profundo conhecedor da literatura de Fernando Pessoa, a quem agradeço a sua extraordinária e desinteressada ajuda que culminou com a autoria do prefácio para o segundo volume destas novelas policiárias – «Crime».

O “médico sem clinica”, Abílio Fernandes Quaresma, elemento chave das novelas policiárias, personagem do universo pessoano, que o seu criador, a exemplo dos seus heterónimos, descreveu minuciosamente, seria como que um “sósia “ de Fernando Pessoa – tanto no aspecto físico como nos vícios ou na personalidade – e a quem Pessoa apelidou de Decifrador.

Neste universo das personagens das novelas policiárias, são três as mais significativas a quem Fernando Pessoa atribuiu outros tantos modelos de raciocínio ou inteligência: científico, em que só os factos contam; filosófico, que dos factos obtém o facto; e o crítico, que se sustenta na análise do que falhou nos outros dois e representados respectivamente pelo Chefe Guedes, o “nosso” Abílio Quaresma e pelo Tio Porco. O debate entre elas enriquece o argumento das novelas, eleva o nível das discussões filosóficas e sustenta a tese de que para Quaresma os “factos” valem menos que os “raciocínios”.

Os comuns ambientes de suspense e de tensão no desenrolar da narrativa, o mistério “noir”, são substituídos pelas longas dissertações filosóficas de Abílio Quaresma, na análise psicológica do(s) criminoso(s), das características dos vários tipos de crimes e dos seus autores; sem esquecer a das vítimas, elas também escalpelizadas. Estamos, no fundo, perante a análise que Fernando Pessoa faz, através da personagem de Abílio Quaresma, à sociedade e aos crimes típicos daquele tempo, explorando as suas motivações, as características das vítimas, dos culpados e os ambientes em que eles ocorrem. 

Estamos também perante, não de uma investigação e de um investigador dinâmicos mas daquilo a que chamamos de “investigador de cadeirão” cuja principal arma é o seu raciocínio dedutivo, comodamente instalado, fumando charutos Peraltas e com uma manta sobre os joelhos. Na famosa arca onde Fernando Pessoa guardava os seus tesouros literários em envelopes, inscritos em folhas de todo o tipo umas dactilografadas outras manuscritas, foram encontradas as novelas policiárias, treze no seu total e em grande parte incompletas – nas palavras, em frases ou mesmo em capítulos inteiros. 

Para a adaptação das novelas para Banda Desenhada, o dinamismo era fundamental, exactamente a dificuldade que encontrámos na narrativa das mesmas. Recorrendo a múltiplos planos, à linguagem do corpo e variando cenários, fui encontrando a fórmula para obviar os obstáculos que iam surgindo. Respeitar com rigor o original foi uma premissa que me impus. E, aí, tive novas barreiras a ultrapassar: os discursos e raciocínios demasiado longos do Decifrador Abílio Quaresma, a ausência de palavras e de frases ou capítulos inteiros. Neste último caso, o problema seria facilmente resolvido – a novela não reunia condições para ser adaptada. Logo, seria eliminada das minhas atenções.

Para inexistências de frases ou de palavras, a Nona Arte reserva-nos a possibilidade de dar alguns “saltos” na narrativa (desde que não alterem o sentido original da obra) sem que nada aconteça de trágico, ou se caia num beco sem saída. Por último, os longos raciocínios de Quaresma também encerravam em si um problema a resolver. Contornar esta dificuldade implicava o respeito pelo conteúdo e pela mensagem nele contido; recorrendo ao modelo da “splash page”, os longos raciocínios foram repartidos por toda a prancha, acompanhados pelas imagens do seu autor.

Resta-me formular o meu desejo de que esta maneira de apresentar a ficção policial de Fernando Pessoa sirva, com diz Ricardo Belo Morais, no seu prefácio de «Crime», segundo volume das novelas policiárias, adaptadas à Banda Desenhada, para, “democratizar” e reinterpretar o apaixonante Quaresma, Decifrador. Seguir-se-á “A morte de D. João”, o terceiro volume desta colecção.     

Referências

Freitas, Ana Maria, “Quaresma, Decifrador, as novelas policiárias”, edição Ana Maria Freitas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2ª edição, 2014:

Lourenço, António Apolinário, “Fernando Pessoa-Quaresma, Decifrador. As novelas policiárias”, Recensões Criticas, Colóquio/Letras, 2008:

Aguiar, Cristhiano, “Fernando Pessoa, autor de contos policiais”, https://www.academia.edu/14749462/Fernando_Pessoa_autor_de_contos_policiais, 23 Novembro de 2022. 

Morais, Ricardo Belo, Prefácio “Crime”, adaptação BD, Edição Kustom Rats, 1ª edição, 2022.

#002