ÁRVORE LIVRE AONDE ENCHER, OSSO A OSSO, UM AMOR


exercício poético 1

Sobre a beleza e a morte

Estamos todos e prescindimos do voto. A cidade é nossa e está sitiada. O frio inunda a praça pública onde a multidão se amotinou. Dos galhos das árvores pendem cadáveres de olhos ensanguentados e sorriso nos lábios. Observam a euforia crescente e, em sonho premonitório, vejo-me eleita a ocupar a única árvore livre. Em trono fosforescente, cercada de plumas e de homens de dorso marcado, espalho, em ondas cálidas, o vento e o odor marinho que me dão vida. Um lenço de vivas cores envolve meus cabelos fartos e a saia imensamente rodada apenas deixa ver minhas pernas voluptuosas que se abandonam entre rendas coloridas. Meu peito cintila e a beleza brilha em minha face negra. De mim se emana, em sons subterrâneos, uma música celestial que faz assomar a felicidade aos lábios dos mortos e agita os vivos.

Meu Deus! Que mediania é essa que me arrasa os nervos e não me deixa ouvir os sons que me apaixonam?

Da multidão um homem se agiganta e em fúria desmedida decepa a cabeça dos vivos. É a revolta dos mortos a quem se tirou a razão de existência. E com suas línguas roxas e inertes tiram a vida ao homem que se agigantou.

No meio dos mortos fico eu. Viva apenas mas viva a palpitar. Para quem correrá o frémito que me nasce na alma? Em quem minhas veias ardentes matarão a sua sede? Por quem contemplarei meus seios perfeitos?

Desterrada no meio dos vivos-mortos verei consumir-se meu fogo que nascido de dentro, dentro se extinguirá, matando-me também e – oh, deuses generosos! – permitindo enfim que meus olhos repousem sobre a formosura ímpar dos corpos caídos e inúteis.

Do livro Amanhã Amadrugada

Vera Valentina Benrós de Melo Duarte Lobo de Pina, mais conhecida por Vera Duarte, nasceu em Mindelo, Cabo Verde, em 1952. Poetisa, juíza desembargadora, licenciou-se pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa em 1978. Desvendando um pouco a relação editor-escritora, pegaremos nas palavras dos seus editores Filinto Elísio e Márcia Souto, da Rosa de Porcelana Editora, que integram Vera Duarte no grupo de escritores cabo-verdianos com maior ressonância internacional. A sua escrita tem sido reconhecida por críticos de renome, estudada em teses de mestrado, doutoramento e pós-doutoramento em várias universidades e distinguida com prémios internacionais, de entre eles o Prémio Tchicaya U Tam’si de Poesia Africana.

Tida como a primeira poetisa assim reconhecida pelos cabo-verdianos, é uma das vozes poéticas sonantes do continente africano. A sua vida literária ganha raízes a partir do ativismo literário-cultural que inicia em tertúlias, enquanto estudante universitária em Portugal, e em participações no jornal Voz di Povo e na Revista Raízes, em Cabo Verde. Foi eleita Patrona dos Colóquios da Lusofonia em 2016, nos Açores, Sócia Correspondente Lusófona da Academia das Ciências de Lisboa em maio de 2017, Portugal, e Membro Correspondente da Academia Gloriense de Letras em novembro de 2017, Sergipe, Brasil. É Membro da Academia Cabo-verdiana de Letras. Foi Ministra de Educação Ensino Superior, Presidente Comissão Nacional Direitos Humanos e Cidadania, Conselheira do Presidente da República e Juíza Conselheira do Supremo Tribunal de Justiça. Integrou organizações como Centro Norte-Sul Conselho d´Europa, Comissão Internacional Juristas, Comissão Africana Direitos do Homem e Povos, Associação Mulheres Juristas e Federação Internacional de Mulheres de Carreira Jurídica.

Vera Duarte estreou-se como autora em 1993, com o livro de poesia Amanhã Amadrugada, publicado em Portugal pela Vega, seguindo-se O arquipélago da paixão (2001), vencedor do Prix Tchicaya U Tam´si de poésie africaine; A candidata (2003), vencedor do Prémio Sonangol de Literatura; Preces e súplicas ou os cânticos da desesperança (2005), Exercícios poéticos (2010), Construindo a utopia (2007), Matriarca: Uma história de Mestiçagens (2017) e Risos e Lágrimas (2018). Em 2019, publica a antologia poética autoral A Reinvenção do Mar. Sobre esta, dizem os editores que o trabalho, sempre de parto doloroso e assistido, resulta num livro-síntese que celebra a 10ª obra da autora e os 25 anos da sua primeira publicação que, este ano, celebra já o seu 30º aniversário.

Cabo Verde um Roteiro Sentimental, Viajando pelas ilhas da sodad, do sol e da morabeza (2019) foi a obra que se seguiu, na qual a poetisa traça um percurso sentimental por Cabo Verde, onde se leem apontamentos pessoais sobre as lendas, as músicas, as tradições, a literatura e a forma de viver particular de cada ilha do arquipélago. Vai viajar para Cabo Verde? Recomendamos este guia, esta bússola de lugares e de afetos, que preenche o cálculo do habitual apontamento turístico com cultura. Em 2021, publica-se novo livro de Vera Duarte, A Vénus Crioula, em cuja sinopse, de Teolinda Gersão, se lê:

“A Vénus de Botticelli é aqui uma bela jovem, negra e nua, de rebeldes cabelos soltos, nascendo numa concha-útero, uma figura não silenciosa, como a do quadro, mas dotada de uma voz encantatória, como a das sereias. No entanto, ao contrário destas, não é um ser maléfico, mas uma deusa benfazeja, como Iemanjá: mulher-milagre, cúmplice de todas as mulheres, mãe, filha, irmã, amante, artista, a nova mulher africana, forte e poderosa, nascendo de gerações e gerações de mulheres sofridas, exploradas, emudecidas e martirizadas, não só pelos colonialismos europeus como pelas suas próprias culturas nativas. Encontramos características sem dúvida frequentes nas gentes de Cabo Verde (e não só), que, através de naufrágios, perdas, desespero, infortúnios e mortes, não perdem o dom da humanidade nem o dom do amor e da esperança”.

Perguntámos à poetisa, em mini-entrevista com ela, quais as suas inspirações para escrever e Vera Duarte respondeu que Ao longo dos tempos fui uma leitora compulsiva. Li tudo o que me passou pela mão. Especialmente os grandes clássicos. Também como ativista dos Direitos Humanos, as grandes causas inspiram-me. Por um lado, o amor em sentido lato é uma permanente fonte de inspiração e por outro a natureza na sua plenitude. Relativamente ao seu processo criativo, Normalmente durante as caminhadas que faço todas as manhãs a ideia surge e muitas vezes se desenvolve. Chego em casa lanço no papel a versão zero. Outras vezes a ideia da escrita assalta-me durante as madrugadas, levanto-me e lanço-a no papel, depois trabalho o texto ao longo das manhãs. De realçar que a minha criação é sempre manual com a caneta e o papel.

E como colocar a poesia em ação? Publicando livros que possam levar a mensagem poética à humanidade. Atualmente, levo a minha poesia através das plataformas online para as várias universidades do mundo. Também se coloca a poesia em ação declamando-a e musicando-a. Sobre se é possível viver poeticamente, a poetisa não hesitou em afirmar que Acredito que sim. Acho que eu própria vivo poeticamente desde que me aposentei e a poesia se constituiu na minha primeira pele. Perguntámos-lhe, por fim, por um poema e/ou poeta para o futuro, ao que nos devolveu: A busca contínua do poema perfeito.

Os livros mais recentes de Vera Duarte intitulam-se Naranjas en el mar, antologia poética bilíngue em português e castelhano, publicada nas Canárias pela Biblioteca Atlántica, e Urdindo palavras no silêncio dos dias, publicado em Portugal pela Kotter Editorial, em abril deste ano, composto por 100 poemas escritos entre junho de 2020 e junho de 2021, referentes ao período de confinamento. “Durante a pandemia da Covid-19 escrevi muita poesia, por isso que digo que poesia é digamos uma salvação porque é nos momentos em que acontece muita coisa ruim à sua volta que muitas das vezes quem gosta, por exemplo, de escrever poesia volta para si próprio (…) e é uma maneira de viver os tempos difíceis muito melhor”. E, lembrando outro abril, o de 1974, deixamos-vos com a própria poetisa, de viva voz, a ler o poema “Abril”, do seu livro Arquipélago da Paixão:

Entrevista Márcia C. Brito
Redação José Oliveira Pinto

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