O corpo cadelabra
procuro a voz guardada
ou em guarda. onde se não ouve
murmúrio, beliscar, invenção insegura
tronco amarrado à terra
em queda os versos tropeçam nas escadas
sobem pelo interior da garganta e soltam-se como as gotículas
de um vírus
nossa respiração comum
à morte sobrevem a vida neste poema
que já mal respira
um mistério fora dos olhos
a página é um mistério fora dos olhos
grave vocação das tempestades interiores.
quando infante imaginava o verbo como imagino o sol.
agora não sei como ver sem as mãos dentro do cérebro:
uma poça vibrante se faz seda.
toco na árvore inventada para ver o fruto.
na imagem para ver a respiração.
toco na palavra para me encontrar com a palavra.
percorro deus com olhos abertos.
o sono se alumia.
o devorador da lucidez tarda
é na transparência da página que nascem as mãos
entre a inocência e a maldição acontece o desconhecimento da palavra
o tempo desperta partículas da racionalidade
o devorador da lucidez tarda.
o sujeito arde sempre antes da forma completa.
fórmula de deus sob fórmula da criação inferior: o homem reluz no verbo – acção.
na estranha matemática das fórmulas mágicas
penso no livro incompleto
escrevendo nós fora da página a caligrafia improvável de um percurso
sopro vontade de ser matéria e tinta
tatuagem no cerne de existir
será que deus escreve direito por linhas tortas? ou será que percorremos
o caminho da página na invisibilidade do conhecimento?
será que o abracadabra iluminário o abre-te sésamo feito de tintas incompletas
nos torna personagens desenhadas no exterior da página?
sejamos humildes. sejamos clarividentes. ou apenas inspirando a força da criação
peguemos numa varinha e em vez de mil estrelas
sejam palavras acesas os uni versos
entras na porta da transformação, na escrita transfigurada
sopro: força vulcânica na casa. pulmões no clarão agudo da morte.
entras na destreza das coisas com as glândulas por fora: invasão surda. imóvel. entras na carne da razão com a luz apagada.
sabes e sabes que a luz apagada é a mais acesa. pela pálpebra. e entras no interior do redemoinho ou na ferida aberta.
levanta-se a dúvida quando o espaço orbita
redemoinha fora do tempo deste lugar de escrita
uma visão galáctica nos supera a hesitação
há um ponto inseguro na margem
deste tapete de aladino que voa na nossa infância mais recôndita
acaricio a lâmpada o lume
que advém da projecção acontecendo
estarei porventura vendo os caracteres hieroglíficos da mão de deus
escrevendo fora da página?
brava a letra que trabalha contra luz perpendicular.
a palavra candelabra no círculo inabitável: – falta a morte.
a palavra grita a toda hora. é triste a transmutação pálida dos olhos perante o coração no consentimentos das solidões.
Do livro a estranheza fora da página

Ana Mafalda Leite
Escritora portuguesa e moçambicana. Nasceu em Aveiro, 1956, e vive em Lisboa. A recente publicação de Janela para o Índico (Rosa de Porcelana, 2020) reúne antologicamente o seu percurso de publicação em poesia, iniciado em 1984 com Em Sombra Acesa. Em A Estranheza fora da Página realiza, juntamente com Hirondina Joshua, um exercício a duas mãos de meditação sobre a matéria do poema.

Hirondina Joshua
Poeta e escritora moçambicana, nasceu em Maputo, Moçambique, 31 de maio de 1987. Membro da Associação dos Escritores Moçambicanos. Faz parte da nova geração de autores moçambicanos, com poemas traduzidos em italiano. É redactora da revista InComunidade (Portugal) e curadora do projecto literário no Mbenga Artes & Reflexões.