CARTASQUAISQUER

Meu trabalho procura colocar em trânsito experiências de vida&morte&vida. Uma resposta de linguagem à perda, que mesmo fazendo da arte um campo de atuação ampliado, tem na poesia seu ponto de irradiação.

Cartasquaisquer se constitui numa série de intervenções nas cartas trocadas por meus pais na época de noivado, entre 1950-52, e que chegaram até minhas mãos após a morte de ambos. Esse universo familiar, depois de um tempo, se entrecruza com outro, quando através de uma caminhada pelo sertão do país inicio um escambo poético com uma pessoa* em situação de cárcere, um preso político. Abrir palavras – abrir caminhos, gestos que colocam mundos em movência.

O processo de criação artística parte da manualidade mais arcaica, o tecer das cartas originais paternas; feltrar uma resposta minha, aproximando temporalidades desprendidas de significado, surgindo assim a escrita não semântica onde as palavras escapam, uma das marcas dessa série. Da materialidade bruta passo a experimentos virtuais: ampliar, reduzir, xerocar, fazer cópias das cópias. Agora todo o corpo é fisgado nas intervenções e no território onde apagamento e acaso cortejam o impercebido, uma nova dimensão surge: o fracasso da linguagem.

Do material ao virtual, do virtual ao fracasso, do fracasso à não-palavra, do esvaziamento à concretude, a palavra-coisa é o núcleo quente da experiência.

Caminhar sobre letras e diferentes chãos, ter na agulha, linha e tingimento a base de uma visão de mundo transcultural, compor e vestir um manto para celebrar o encontro com outro na diversidade é dar às palavras um novo corpo táctil-sonoro, é permitir que o pensar ganhe modulações e assim talvez esse corpo-palavra venha a ocupar o lugar de instanternidade.

*Jorge Augusto Xavier de Almeida, líder dos movimentos sociais de base, está preso desde 2016, sem nenhuma prova dos crimes a ele atribuídos.

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