lusografias: narrativas do desconforto


Calor, luz e a aparente simplicidade de quem habita. É o que se sente ao chegar às terras do Porto Grande – mais um porto a juntar ao porto que trago dentro de mim – um porto de abrigo onde largo ferro e onde me dou mais uma oportunidade para avançar para lá dos nós com que me coso, num emaranhado constante e sem tempo.
Anos para que entenda por detrás dos sorrisos, das falas mansas e dos olhares penetrantes, um passado também ele de nós, falhas e rupturas. História de crises, de fome e de abandono. Passado construído sobre a aridez e a impossibilidade, e apenas amaciado com o fluxo de embarcações acostadas no Porto Grande, graças a um colono que não o original.
A sazonalidade dos contextos portuários exerce sobre esta pequenina areia em pleno Atlântico a necessidade em contrapor a aparente perda da partida e a constante substituição de novas chegadas, a superficialidade dos contactos e a riqueza da diversidade, a precariedade do trabalho e as possibilidades da constante reposição de fluxos.

Falam de resiliência. E é disso que se trata.
Essa, está estampada nos rostos das vendedeiras de pastel e nos homens que aguardam por trabalho na Ponta de Praia, ainda que o façam na companhia de um grogue barato no boteco de esquina; está cravada na vida de cada um que subsiste graças à informalidade de uma economia paralela, construída a pulso, e a partir da qual foi possível sobreviver.

A sua sonoridade – a sua língua – é um engodo quando veste fato lusitano. Automaticamente, o cérebro reage com percepções que não consigo traduzir, mas que claramente sinto dentro de mim. O português, muitas das vezes límpido, diz-nos que temos a mesma história, proveniência, esquecendo-se que a língua, essa, é símbolo de imposição de colono sobre escravo e de branco sobre preto. Não temos a mesma história, não a podemos ter, se é de lá de onde venho que também chegaram as embarcações que fizeram desta terra deles também e que com a língua baptizaram em bom português também a província como Portugal.
Entre nós, resquícios de um passado imperial que se opõe ao da submissão. Sorriso que se abre, e que ainda que aberto, esconde as mazelas sofridas e provocadas por uma ancestralidade que não partilhamos. O chão abre-se no meio de nós. Os nós que trago e os nós do outro, desencontram-se num céu também ele rasgado sobre nós. Nós que não somos os outros. E nós que se reduzem a borboto de uma espécie de tecido barato quando justapostos com os nós dos milhares de fios que compõem a insularidade das ilhas crioulas.
Daí o engodo.

Estará a minha ancestralidade a bordo de uma caravela?
Os meus antepassados não são mais do que camponeses do interior-Norte de Portugal e Espanha. Não somos marinheiros e sinto-o na pele de cada vez que atravesso o canal entre o Ilhéu dos Pássaros e o Porto Novo.
Isso. Do lado de lá, outro porto, um porto mais agreste para mim pelo enjoo que trago de toda a vez que lá chego, mas que antes de ser “Novo” foi “Carvoeiro”, novo também esse nome – fugidio – e criado na ânsia de ocultar o seu nome original que remonta a um período anterior ao da abolição da escravatura: Porto dos Escraveiros.
Ainda que a minha ancestralidade remonte à terra, às enxadas e às foices da Península Ibérica, numa história também ela recheada de fome e de miséria – e na impossibilidade de trazer no meu rosto estampado o analfabetismo dos meus antepassados – o que será que me veem quando me veem perante si? Se o rosto é branco e o cabelo é fino, o que veem em mim quando me abrem o sorriso e me respondem portuguesmente falando?
O que foi que fizemos, se enquanto passávamos fome revirando as batatas do feudo, atravessavam os mares e conquistavam as terras, em representação da coroa e iluminados pelo cristianismo? O que foi que aprendemos quando a primeira geração de alfabetizados aprendeu na escola a nobreza e a coragem do ser português, que parte para o desconhecido e que expande o seu território além-mar?
Como limpar feridas se estas que trazemos não se tratam com águas oxigenadas ou outros produtos materialmente encorpados. Se nem as feridas sequer se veem? Mas se as cicatrizes são tão profundas quanto a fractura que na terra e no céu se abrem a cada vez que nos encaramos?

“Olhos que não veem, coração que não sente”, não é assim?
Tendencialmente, menosprezamos patologias invisíveis porque “se não se vê, não há-de ser assim tão mau”. Engodo número 2. Como uma azia que conseguimos mascarar com um antiácido, também estas cicatrizes são camufladas com fáceis sorrisos que a cada esquina se abrem.
Diz-me o meu passado que a melhor forma de tratar as tais patologias invisíveis é falando sobre elas e esmiuçando-as, enfrentando a dor que essa exploração causa, aceitando a revolta que provoca ter de mexer em profundas feridas que muitas das vezes têm origem muito lá atrás no tempo. Diz-me o meu passado também que é histórica a desvalorização de tais patologias sendo frequentemente valorizada a dor física em detrimento da psicológica/mental/emocional.

No porto de abrigo onde larguei ferro tem mais de 6 anos, entendi a importância de nos colocarmos na posição de esmiuçar, e questionar se somos ou não descendentes dos grandes navegadores dos descobrimentos portugueses ou, se pelo menos, somos produto de um sistema politico-educativo que empolou a importância desses mesmos navegadores, levados além-mar pela coroa portuguesa e abençoados pela igreja. Os discursos centralizados no território geopolítico europeu convergem no aplaudir da coragem de homens conquistadores que para cumprir suas conquistas impuseram vontades e valores, empunhando arma e bíblia em cada uma das mãos.
O discurso de orgulho de ser europeu mascara com sangue azul, o sangue do sul lavado das mãos de quem descendemos. Engodo número zero.

No meu caso, o desmontar de discursos coincide com a descentralização de mim, com a minha deslocação a sul e com esse fundear num porto que não é o meu. Coincide com a desconstrução necessária à configuração do discurso português e aos sorrisos afáveis que encontrei.

Apenas cerca de 40 anos de distância entre o achamento das ilhas da Madeira e de Santiago. Dois territórios desocupados e relativamente próximos. Ainda assim, a proximidade ao continente africano e a disposição a Sul do arquipélago cabo-verdiano determina-lhe a criação de um entreposto comercial negreiro, claramente expresso no pelourinho do primeiro aglomerado populacional em África fundado por portugueses. Os tempos áureos do império português coincidem com um período escravocrata da história sangrenta que protagonizámos.

Entre portos, numa busca constante e angustiante por propósito, entendo resquícios de um discurso colonialista e paternalista de cada vez que me deparo com o ponto de partida. No de chegada, coso com esses discursos a posição tendencialmente subalterna que percepciono. Vou tecendo histórias e assumindo desajustes, tateando os nós que vão ficando para trás sem nunca os esquecer. Preciso lembrá-los e colocá-los em evidência. Vê-los de perto, gravá-los na memória. Assumir a voz mesmo quando ela me falha, quando treme e quando a garganta se transforma também ela em nó, impedindo-me a respiração, a fala e, de mim, apenas saindo o soluço. Esmiuçar, olhar de perto as fracturas e os engodos que se vão montando em torno e ter a coragem de questionar ou pedir perdão, ainda que os antepassados tenham vivido sem voz e que, determinantemente, a ancestralidade de cada um de nós tenha estado longe dos mares e enterrada fundo no silêncio da terra. 

Inês Alves

Inês Alves (Porto, Portugal, 1983). Arquiteta desde 2008, mestre em Arte e Design para o Espaço Público e doutora em Educação Artística. Vive em Cabo Verde, São Vicente, desde 2015. A escrita é para si uma prática quotidiana que explora como instrumento de pensamento.

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