Nos espelhos da inter-subjectividade
“A história que gostaria de vos contar é, de certa maneira, a do sujeito que vê”…
“ a história da imagem do homem feita por mão do homem, à qual se deve termos olhos que se abrem para o mundo de modo incomparável.” (1)
Imagens que nos fazem renascer
Hoje sinto-me em luta com o espectáculo das visibilidades, com o deserto da imagética industrial. Acredito que na carne das imagens vive uma irrea- lidade fecunda, vive a construção do eu, a imanência do nós, um espaço de interpretação que alimentado pelos sonhos, pela ficção e pelo desejo, nos pode libertar do convencional, da moda, do pseudo alternativo, tudo arrumadinho, pronto a consumir. Sem um espaço de liberdade, sem a oportunidade para sonhar e concretizar sonhos, sem o espaço e o tempo para fazer, somos apenas alvos fáceis da grande engrenagem de produção que dejecta produtos, não passamos de presas da indústria do espectáculo que nos impõe estéticas e linguagens transformando-nos em espectadores acríticos, em simples consumidores. Para mim hoje, é fundamental resgatar o tempo. Tempo para fazer, tempo para pensar, tempo para intervir.
Segundo Herbert Allen Gilles (1880), na época lendária do Imperador Amarelo (2697 a.C. a 2597 a.C), acreditava-se que o mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, aliás, muito diferentes; nem os seres, nem as cores, nem as formas coincidiam. Os dois reinos, o especular e o humano, viviam em paz, entrava-se e saía-se pelos espelhos. Uma noite, as pessoas do espelho invadiram a Terra. A sua força era grande, mas ao fim de batalhas sangrentas prevaleceram as artes mágicas do Imperador Amarelo, que repelindo os invasores, os aprisionou nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetirem, como numa espécie de sonho, todos os atos dos homens.(2)
Hoje acreditamos na imagem, na maior parte das vezes de forma irrefletida, ali está ela, como não ver? Está ali, faz-se presente, posso vê-la e ela mos- trasse, podemos vê-la juntos e no acto conjunto de ver, acreditar, pois ali está ela imanente, latente, vibrante, como duvidar?
Mas, será que podemos mesmo ver o real nos inúmeros espelhos que nos rodeiam ou o que vemos, fundido com as imagens preconcebidas que temos, resulta afinal apenas na ilusão concebida pelo Imperador Amarelo? Estaremos condenados a viver mergulhados num mimetismo redutor?
“No fundo travamos uma briga encarniçada contra a pobreza de opções disponíveis no mercado da vida. O leque dos possíveis contém cada vez menos modelos de normalidade ou de anormalidade, cada vez menos e mais pobres formas de viver a familiaridade, a criação, a política, a conjugalidade, os modos de subjetivação, como se assistíssemos a uma homogeneização crescente de um social cada dia mais codificado.” (6)
O especular
(latim speculor, -ari, espreitar, espiar, observar) Verbo transitivo
1. Estudar, observar com atenção, não prática, mas teoricamente. 2. Meditar, contemplar. ( figurado)
(latim specularis, -e) adjectivo de dois géneros
1. Relativo a espelho (ex.: reflexão especular).
2. Que reflecte a luz (ex.: mineral especular).
3. Que deixa passar a luz ou parte dela. = DIÁFANO, TRANSPARENTE

“Ao ensinar-nos um novo código visual, as fotos modificam e ampliam as nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver.”(2)
Será ainda possível resgatar o olhar? O caminho para a liberdade? Será que a encarnação com as palavras nos pode ajudar?

Madrugada
A poeira das palavras infiltra-se,
uma névoa, ás vezes colorida.
Através das vidraças húmidas vozes-pássaro diluem-se no mar.
No escuro, a tua pele reflete os sons da madrugada, procuro a tua mão, humaniza-me.
Lá fora os cães uivam o medo, como só eles sabem.
“Fotos, que em si mesmas nada podem explicar, são convites inesgotáveis à dedução, à especulação e à fantasia.” (3)
Foi este o pretexto que me levou a produzir estas imagens.
Horas tardias, reflexos numa parede branca, sombras que desenham formas, o desejo de capturar as sombras e a luz, o impulso de inscrever no diáfano uma presença humana.

As mãos são o elo
…“Este órgão é um aparelho de registro maravilhoso. Muitas vezes, um único estímulo é suficiente para produzir uma impressão duradoura ” (4)
“O homem permaneceu uma forma não especializada e manteve suas múltiplas facetas – neste mesmo fato reside grande parte do segredo de seu extraordinário sucesso […] a sua vitória está enraizada nisso […] que ele manteve a sua mão [… ] Não é tanto o facto de ter uma mão – houve uma época em que todos os mamíferos tinham uma mão – mas antes a circunstância de este órgão ter ficado na sua forma original, e de se colocar a serviço de um enorme crescimento, dos cérebros, isso é o mais notável ”. (5)

Desde a Aurora
Como um sol de polpa escura para levar à boca,
eis as mãos: procuram-te desde o chão,
entre os veios do sono
e da memória procuram-te: à vertigem do ar abrem as portas:
vai entrar o vento ou o violento aroma de uma candeia,
e subitamente a ferida recomeça a sangrar:
é tempo de colher: a noite iluminou-se bago a bago: vais surgir para beber de um trago
como um grito contra o muro.
Sou eu, desde a aurora,
eu — a terra — que te procuro.
Eugénio de Andrade, in “Obscuro Domínio”


A inter-subjectividade
Inspirado em Yurval Harare / Homo Deus
“Nas teias inter-subjetivas de significados, fundamos a nossa imaginação comum, os nossos sistemas de crença.”…“Somos filhos dos conteúdos das nossas histórias imaginárias…“A realidade inter-subjetiva engole a realidade objetiva tornando a ficção na força mais poderosa na Terra.”
Até quando continuaremos a deixar que nos destruam os sonhos?
(1) Homo spectator
Ver > Fazer ver Marie-José Mondzain
(2) O livro dos seres imaginados Jorge Luís Borges
(3) Ensaios sobre fotografia Susana Sontag
(4) Ensaios sobre fotografia Susana Sontag
(5) (G. Bohn, p. 328).
Anthropogenesis –A Study of the Origin of Man Anton Pannekoek 1944
(5) Teilhard de Chardin, C.C. Young and W.C. Pei, Fossil Man in China (1933) (Geological Memoirs A Nr 11).
(6) A Nau do Tempo Rei, 7 Ensaios dobre a loucura, Série Logoteca , Imago Peter Pál Pelbart

José Matos Alves
José Matos Alves nasceu em Lisboa, Portugal, 1961. Começou a fotografar em meados de 1980 e desde então tem fotografado de forma regular em contexto de descoberta autodidata. Ao longo do seu percurso, realizou diversas mostras, das quais se destacam: “Geomorfologias,” realizada em Setúbal no ano de 2007, “Olhares” realizada no Centro Cultural Português, Instituto Camões, em Cabo Verde em 2010 e “La Jetée” em 2020, realizada no Centro Cultural Ildo Lobo, em Cabo Verde.