Pôr os olhos no caminho

Uma casa é gestação para a vida e
se um filho sentiu a casa onde habitou,
há de querer conhecer o pai,
para que ele se reencontre a si mesmo,
ainda que não reconheça o próprio filho.
Como o destino a dar de caras com as estrelas,
com um amor maior do que amar
no centro duma planície a conter
a presença pendurada por
espectros de um luto coletivo por fazer,
de uma conversa contigo que alegre o corpo.

No ilhéu, fetos movem-se no lago impoluto e
centenas de pais atiram filhos ao ar sem que caiam,
ao começo do dia, do movimento,
do movimento nascente ao longo de uma serpente a
serpentear pelas costas até à base do pescoço,
ao Pai Xangô, a Serápis e às pítias,
sustendo o vislumbre alto de onde um
rebentamento vertígico se dissolve
no lado de lá
para comungar com o invisível,
celebrar o ar a deslocar-se,
o vento a abanar a realidade,
sobreviver ao campo circular devastado,
estendendo a mão a um sopro raiado
a descer como água em cascata sobre
o corpo a pender entre o fim do medo e
o princípio da visão confiante dum olho
a auscultar translúcido um sentimento terreal e
a refazer da poeira, a festa de abraçar-te.

Cristais cadentes dum céu partido,
duma escravidão das nove às dezassete,
como construir uma resistência em família,
se esta célula social não resulta em lucro,
como se o lucro pudesse ser a medida,
como se acreditar pudesse ser mero otimismo,
como se a bondade não fosse deste mundo.
Enquanto o ódio é soro para curar úlceras de
porcos moribundos a chafurdar no próprio estrume,
pergunto: o ódio trouxe futuro aos Maias?
Para lá das possibilidades de sobreviver,
trata-se dos modos como se poderá legitimar
o facto de se continuar a estar vivo.

Do livro Pôr os olhos no caminho

José Pinto

José Pinto (Vila Real, Portugal, 1988) é poeta, dramaturgo, tradutor, performer e psicólogo. Autor de Humanus (Corpos, Portugal, 2015), TOCA: oito poemas de amor e uma canção angustiada (UMCOLETIVO, Portugal, 2021) e Chá para o nevoeiro (Urutau, Galiza-Brasil, 2021). Tem textos publicados em revistas e fanzines do Brasil, Cabo Verde, Espanha, Estados Unidos da América e Portugal. Escreve para teatro, com textos estreados em Cabo Verde e Portugal. Curador do projeto txon-poesia (Cabo Verde-Portugal) desde 2017. O mais recente livro tem o mesmo título do poema, escrito em várias partes, Pôr os olhos no caminho (Nova Mymosa, Portugal, 2021).
www.josepinto.net/

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