X
o terreno fissurento arrouba
tanta trincheira besta
que no peito aberto pousa
aquela velha exausta flor
porém flor
eterna-
(e era dia quando o
era
gente pra todo lado
sorrisos que escancaram
degolas
o que raia se oblitera
seja chuva
que irriga
o sol
que em brasa ao mundo aviva
ou a flor
que de tanto existir só existe
mas o que se oblitera talvez alumie)
-nunca-vista
em buquê ou outro
na terra de povo irrigada
onde colhe raiz
o cadáver jardineiro
INOMINÁVEL
não se pode ver além. não se vê, não se quer ver. à imagem surda, os olhos fechados. olhos fechados de tanto ver além. e além, que se vê, não se vê. não mais. olhos se abrem, recuam e se fecham. espantosa opacidade do além-visto. insiste, abra os olhos, não abrem. força com os dedos e recuam, lacrimejam e se espremem às pálpebras. siga em frente, vá, abra os olhos. esforço negado, não se pode ver além, pois não se quer ver. não se vê pois não se quer ver – por outro e outro motivo.
um outro você vai caminhando, inomináveis formas à sua direita, à sua esquerda outras mais, frente e atrás mais algumas e em todas as outras direções. quem vê e o que vê, nada vê, nenhuma forma vista, quem conta sou eu e sou o silêncio.
de alguma maneira, a consciência ligada à visão se obscurece. e se obscurece porque nada vê. não vê porque não quer, porque não se pode ver além. e se pudesse, o faria – não faria, não tem interesse em temores. a consciência de quem é e o que se é escapa aos outros, mas não ao eu você. e o outro você vai caminhando, aqui e além, mas sem enxergar. sabe o caminho, caminhante e sua história, caminhante e seus passos. só não vê como vê, porque não vê. não se pode ver além da espantosa opacidade do além-visto.
sim, está em si. sim, acredita estar em si, o outro você ao eu você. olhos obrigados a se abrirem jamais se abrirão. desobrigados, tampouco. que estímulo. voltado a si, tenta de si se ausentar, mas não consegue. não. jamais conseguirá, pois só tem a si. não se pode ver. além não se é. não se pode ver além do que se é e do que se quer ver. à imagem surda, os olhos fechados recuam e se espremem.
Do livro Noturno
VERTIGEM
o cifrão enriquece a catedral enriquece o demagogo enriquece
o nazista enriquece o silêncio cresce a censura
cresce o extermínio cresce a milícia cresce
o ditador cresce e o povo se estapeia eia!
o “camarada” nada faz e esperneia eia!
a esperança adoece o povo adoece
a inteligência adoece a paz
adoece o amor adoece e chega um
ponto em que o ponto é tão turvo
e tão legível que não
há absurdo
que o basta
cesse
o
absurdo
cresce
Do livro Noturno
TERAPIA
é cisão
quando cava a toca o tatu
e se esconde, pois é presa
à contração dos músculos
escuros e tesos
à noite terrena
terrária
é cisão
quando abre trincheiras
e o peito que pulsa a angústia
o expulsa de si
e purga e propulsa
a vida que deixara
e do medo soergue
e da cisão claro-escura
da púrpura enérgica e pura
consegue
enfim
o azulino celeste

Paulo Mielmiczuk
Nasceu em São José dos Campos, Brasil, 1995. Graduado em Letras, exerce como professor de Educação Básica em São Paulo. Autor de Poética (Multifoco, 2014), Naufrágio (Kotter, 2020) e Noturno (Kotter, 2021). Além disso, administra o projeto dedicado à divulgação de poesia e poetas em língua portuguesa no perfil de Instagram @poetica_mielmiczuk.