Indústria cultural

As distrações 
para as famílias do interior
exigem recursos humanos
próprios.

Aqui 
não vêm atuar
os grandes atores,
aqui 
não vêm ler
os grandes poetas,
aqui 
não vêm cantar 
os grandes cantores,
aqui 
não se digna
a interpretações 
a intelligentsia.

Aqui, 
às igrejas evangélicas 
e às academias de ginástica 
pertence a implementação 
do Mens sana in corpore sano.

As visitas à sorveteria
que antes fora uma pizzaria
e antes, uma lanchonete, 
apenas mudam as paredes,
que não trazem 
nem fotografia nem pintura
de tradições centenárias.

O espaço público 
— nem Ágora nem Eclésia —
incita variações 
— agora aos sussurros —
dos ressentimentos velhos,
das irritações pequenas
que se acumulam
e latejam como pústulas.

As frustrações do pai,
as frustrações da mãe,
e assim, em escadinha,
as frustrações nascentes 
da prole toda, em perdas
crescentes.

À mesa 
reina nossa mesma 
falta de assunto da janta
ou o assunto repetido 
à exaustão. As dívidas 
com Deus e com César.

E sim, o silêncio 
sobre os únicos assuntos
que quiçá nos salvassem.
Quem-nos-dera, num instante 
de lucidez repentina,
aguássemos agora
os sorvetes, as pizzas, os lanches 
com lágrimas, esgoelando juntos
na sarjeta. Mas o que diriam
os vizinhos?

Nas capitais
lacrimeja a intelligentsia 
— o povo! o povo! — 
enquanto o mofo e o musgo
cobrem aos poucos 
a nossa não-boca, a nossa não-alma.

As mangas e os bois

Jamais rasguei no dente
o coração de um boi
para saber se a consistência
é a mesma entre as carnes
da manga e do mamífero.
Sei que foi destinada a meus dentes
a polpa da fruta
para chegar às sementes,
desnudá-las e espalhá-las
entre bois que adubem o chão
da sua frutificação.
Percebo que o coração de boi
e a coração-de-boi
são imagem e semelhança
assim como a crista-de-galo
e o galo e sua crista.
Dizer porém o quê
da espada-de-são-jorge
e a espada de São Jorge?
Da costela de Adão
e a costela-de-adão?
Ontem, à mesa de um bar,
o amigo nomeou seu destino
nos próximos meses,
disse estar a caminho
da Cabeça do Cachorro,
causou susto, interrogatório.
Tudo tem provas, um mundo
cartografado com cuidado,
é isso que nos legaram
os antepassados, mortos
entre os polos Norte e Sul.
O amigo logo mostrou-nos
no mapa digital, invocável
pela voz, a região
no extremo noroeste
do país, no estado
do Amazonas, na fronteira
com Colômbia e Venezuela.
Como é possível jamais
soubesse que a terra possuía
uma cabeça de cachorro?
Nunca olhei tão longe?
Vivo nos seus intestinos.
Ora, parece-se mesmo
com a cabeça de um cachorro,
latindo, latindo, enraivecido,
pensei eu, enterrando os dentes
no coração dos bois
e na coração-de-boi,
com a minha cabeça de cão,
minhas costelas de Eva e Adão.
Talvez seja hora apenas
de aceitar o calor que colore
as mangas, esse dezembro
em que derretemos
mas, ao menos, juntos,
de amar com igual suculência
o próximo e o distante,
planejar viagens curtas e longas
ao Lago das Garças e a Chã de Alegria,
a Anta Gorda e à Cabeça do Cachorro.
Amar o nativo e o enxertado,
assim como talvez amarmo-nos
a nós mesmos, há tanto tempo 
enxertados 
como as mangas e os bovinos,
que já nos tratamos por nativos.

Pamonhas, pamonhas, pamonhas, pamonhas fresquinhas, pamonhas de Piracicaba

              a Caetano Romão

Diz-me 
se as espigas hasteadas
dos milharais
ainda brotam e se douram 
sob a pele verde
e se espicham ao sol,
eretas como a bandeira
da terra,
e então se dobram
às mãos 
que as colhem,
e aos brados 
anunciam-se nas boleias 
e carrocerias 
dos caminhões de pamonha 
oriunda do flavo
reino de Piracicaba.

Diz-me
se aquela avó 
com mãos hábeis 
ainda retira, folha 
a folha,
como a véus, a roupa 
verde do milho,
e o debulha na bacia 
de ferro das Minas,
para socá-lo 
até o sumo e o suco
e então revesti-lo,
após o ter despido,
com as mesmas folhas 
verdes da espiga-falo,
agora mero sabugo,
à bolsa-vulva
que contém a pamonha 
flava
do piracicabano reino.

Diz-me
se o menino 
magricelo e medroso,
que conhece a jararaca
e a cascavel
inquilinas dos milharais,
ainda se acocora
ao lado da avó 
com colo de canjica
e mãos de polenta,
observando o ritual
da faca afiada
a desbastar da espiga 
seu ouro, 
e o maceramento dos grãos, 
e o cozimento dos sucos,
e o empacotar da massa
a folha e barbante,
à espera da nutrição 
doce, doce.

Diz-me
se a mãe ainda grita
da cozinha
que não há motivo
para gastar os recursos
da casa
e alocá-los a Piracicaba
se a avó faz do milho 
o melhor em casa, 
o curau e a pamonha
do nosso pomar doméstico,
para manter em Bebedouro
e na família as caraças 
das notas de mil-réis
e o produto interno 
e bruto
do coração do milho,
do caroço dos filhos.

Ricardo Domeneck

Ricardo Domeneck é um poeta, contista e ensaísta brasileiro, nascido em Bebedouro, São Paulo, em 1977. Lançou nove coletâneas de poemas, entre elas Carta aos anfíbios (2005) e Medir com as próprias mãos a febre (2015). Foi coeditor das revistas Modo de Usar & Co. e Cabaret Wittgenstein. Hoje edita a revista peixe-boi.
Trabalha com vídeo e poesia vocal, apresentando-se em espaços como o Museo Reina Sofía (Madrid) e o Museo Experimental El Eco (Cidade do México). Tem livros traduzidos na Alemanha, Espanha e Holanda. Vive e trabalha em Berlim.

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