AMARE STANCA
Como trabalhar sob a cinza do sol: amare stanca
Ali erguemos um amor inteiro
num chão onde havia quase nada
só pedra e terra ardida: nem uma amoreira
existia na cidade.
(uma única; em toda a lisboa,
os bichos da seda à míngua
e, sobre os nossos ombros, o chumbo
a sarja esfolando a pele
em sarrabulho)
Tardava amar
sem uma gota de sombra a abrigar-nos
dos estilhaços do sol da rudeza do sal
atiçando a sede.
Debaixo dessa amoreira que não havia
procuramos um banco de jardim
onde pudéssemos deitar o coração a descansar
da pressa de morrer.
As unhas doridas de arrancar escamas ao alcatrão.
Nós vedores no deserto a coar
um caldo de orvalho antigo
sob a pez moída do asfalto regando a areia
para fazer medrar a sombra
que não havia: uma única
em toda a cidade.
O sol não tinha mais o que queimar e escurecia
não porque fosse de noite: o próprio dia
era um tição escuro e lasso sem ter sequer
por onde arder ou talvez
nem fosse o sol enegrecendo
mas só mosto maduro das amoras cacheadas
a cair dessa amoreira que não havia
e ali plantamos
com a urgência de colar as pedras às raízes.
Esterilidade a céu aberto: A luz noctívaga
às escâncaras pelas ruas
amolecendo a madrugada.
Lisboa naqueles dias chamava-se gomorra ou sodoma
ou lá o que se poderia chamar a uma cidade só de sal
sepulto embebendo um amor maninho na mais fértil
solidão dos dias.
Tão sólidos esses dias e entre o chão e o céu
nem uma amoreira na cidade
sequer um banco debaixo dela
onde nos deitarmos
a soçobrar famintos da penúria de viver.
(que cidade esta em que não florescem amoreiras? Nem uma só.
Que terra traz os seus bichos da seda à míngua, verdes da fome,
um círio de ferro e alcatrão a fervilhar de cinzas?)
Desperdício de sítio ílhaco onde não havia quase nada
a não ser enxames
de eléctricos amarelos restolhando como besouros
o desassossego de ir e vir
e ao fundo uma régua de sílica:
o Tejo inteiro por inventar
estalando de azul e cacilheiros.
Tivemos, nós dois, de construir tudo de raiz
de porfiar um broto verde no engulho da poeira:
plantar uma amoreira
(uma só que fosse, em gomorra ou lisboa ou lá o que se chamava aos dias desterrados)
inventar o Tejo toda uma braça de rio por atravessar
(uma ponte faz tanta falta a uma cidade: onde mais
mergulhar de frio o corpo morno depois do sexo ? )
Tanto
ou mais
que trabalhar: Amare Stanca.
Houve que erguer todas as sombras debaixo do sol
desatar com as mãos (sim , as unhas quebradas)
o nó que amarrava o coração à raiz mais funda
rafada à miséria da pedra deixar desabar
o estrondo das sombras nos bancos do jardim
sovar a calçada inútil e deixá-la toda negra
por causa das amoras e da noite madura caindo
dos ramos da amoreira que não havia
e que plantámos ali, às nossas mãos (unhas quebradas, sim)
ali, onde não havia quase nada para lá
da carência fecunda
florescendo ao sol.
Como viver
tanto mais que trabalhar,
Amare stanca
tanto como fazer a mão para
plantar uma amoreira ou escrever um poema
excessivo e longo: arado sulcando terra avante
indo e vindo regressando pelo rebordo
adverso da página
o trajecto louco e lento dos eléctricos
num restolhar de insectos na cidade.
Um poema longo como um amor altíssimo
a que só se chegue de bicos de pés,
a amora enegrecendo : uma só gota de dia
para dar de beber à noite
à sede dos amantes sitiados ali
no sítio onde não havia quase nada:
Só pedra
e terra ardendo
na cadência da métrica
( e do eléctrico indo e vindo como um besouro à toa e sem trajecto)
daquela amoreira que plantámos ali
na cidade onde não havia quase nada.
AMARE STANCA
K´manera terbaliá dboxe d sinza d´sôl: amare stanca
La no erguê um amor inter
Num txon ondê k ka tinha kuase nada
Só rotxa e terra kemod: nem um pê d´amora
tinha n kel sidede.
(um sô; n tud Lisboa,
kes bixtin d´séda à mingua
e, d´riba noj ombre, txumb
kel sarja te xfolá pele
ne sarábulie)
Mar tava dmorá
sim um gota d´sombra pe no gatxá
de kej estilhasse d´sol d´rudéza d´sal
t tiça sede.
D´boxe dess pê d´amora ke´n dinha
nô expiá um bonk de jerdim
onde k no pudia detá noj kurason e deskansá
dum pressa de morrê.
Unha durid de tont ranká eskama d´alkatron.
Nos verde n dsert t koiá
um kold d orvalhe entig
d´riba d kel negrura muíd de ojfolt t rega êreia
pe feze medrá um sombra
ke´n dinha: kel unika
n tud kel sidede.
Sol ene dinha más ú k kemá e el tava te eskuressê
não purke fosse d´note: própe dia
já era um tiçon eskure e góste sem sekér ter
pûr ondê ardê ô talvej
nem fosse um sol te enegressê
mas sô mosto madure d´amoras kexióde
t kaí dess pê d´amora k´n dinha
e no semiel
ke urgênsia de kolá kej pedra n kej raíz.
Esterlidade a séu abert: luz noctívga
eskânkarod p kej rua
te molessê medrugada.
Lisboa n kes dia era gomorra ô sodoma
ô lá ukê no pudia txmá um sidede só d sal
sepult te eme´bebê um amor manin ne mes fértil
solidão dos dias.
Uns dia tão sólido e entre txon e séu
nem um pé d´amora ne kel sided
sequer um bonk d´boxe del
ondê deta
te matá esfomeod de pnúria de vivê.
(ma kasta d sided é ess onde k´en de floresce um pê de amora. Nem um sô.
Ki terra é ess ek t treze sij bitxin d séda à mingua, verd d fome,
um sírie de ferre e akcatron te fervilhá de sinza?)
Desperdísie de lugar ílhoke onde ká tinha kuase nada
a não ser inxeme
de elétricos amerel te restolhá moda bsor
desassosség de bé e bem
e n fund um régua de sílica:
Téje inteir por inventá
te estalá de azul e kasilheire.
Nos dos, tive k konstruí tud de reíz
de porfiá um brote verde ne engulhe de puêra:
plantá um pe d´amora
(um sô k fosse, ne gomorra ô lisboa ô lá ú kê kes t txma dia desterrod)
inventá Teje tud um braça de rio por trev´ssá
(um ponte t fazê tont falta num sided: onde mes nô podê
mergulhá d frio korp morne txpuj dum sexe ? )
Tonte
ô mej
ke trebaliá: Amare Stanca.
Tive k érgi tud sombra d´boxe de sol
dsatá ke mon (sim , unha kebrod)
um nô ek t marrá kurason n raíz mej fund
rafod n miséria d´pedra txá dsabá
estronde de kej sombra ne kej bonk de jerdin
sová kalssada inútil e txel tud pret
por causa dex amora e de noite madure te kei
de rome dum pê d´amora ke ka tinha
e ke nô plantá eí, nôj mon (unha kebrod, sim)
lá, ondê ke´n dinha kués nada prá lá
dum karênsia fekunda
te florejssê ne sôl.
Komo vivê
tonte mes ke trebalié,
Amare stanca
tonte komo fazê môn pe
planta um pê d´amora ô eskrevê um poema
exssessive e longue: órode te sulká terra avante
te bé te bem te regressá pe reborde
adverse dum pájna
traject doide e lente dex eléctricos
num restolhar de inset ne sidede.
Um poema longue moda um amor altíssimo
ondê gente te dgá sô ne bike de pê,
amora t enegrecê : um sô gota d´dia
pe dá de bebê à noite
séde de amantes sitióde eí,
ne kel lugar onde ke kuase k ka tinha nada:
Sô pedra
e terra te kemá
ne kadênsia de métrica
( e de eléctrico te bé t bem moda um bzor à toa e sem trajet)
de kel pê de amora ke no plantá eí,
ne kel sidede ondê ke´n dinha kuase nada.
Traduçon pe kriol Márcia Brito

Rita Taborda Duarte
Rita Taborda Duarte nasceu em Lisboa, em 1973. É poeta, professora do ensino superior e escritora de livros para a infância. Em 1998, publica o seu primeiro livro de poesia (Poética Breve, Black Sun Editores), a que se seguiram Na estranha Casa de um Outro (2006) e Dos Sentidos das Coisas (2007). Venceu o prémio Branquinho da Fonseca Expresso-Gulbenkian, com o livro A Verdadeira História da Alice. Conta com uma dezena de obras publicadas e incluídas no Plano Nacional de Leitura em Portugal. Em 2015 publica o livro de poesia Roturas e Ligamentos (Abysmo) e, em 2019, As Orelhas de Karenin (Abysmo). Tem sido convidada em diversos festivais de poesia internacionais.