INTRODUÇÃO A METAFÍSICA DA MEMÓRIA

1. DO ALGARISMO ROMANO

1Sem inversões de marcha, o cardume cabo-verdiano ainda na aba do chapéu [esta angústia de repartir o pão com a navalha] tinha no estômago o bocado da viagem: de chegar de improviso, trôpego e com a sede aguda das águas claras da ilha de Santiago na língua. A Cidade Velha com os seus Hunos guerreiros espraiados na areia da praia dos gatos. Na loca onde a rapaziada inventara a tecnologia de como beber a frescura lírica da Lua. 2Quanto outrora íamos de relampejo pregar partidas aos navios da marina mercante no transbordo dos feridos de guerra. 3Os senis recados da avó — pouco saíamos da órbita para não desarrumamos o Universo — de que Mindelo soubera imitar. Teleguiávamos as coisas que subiam aos juncos dos céus: como os papagaios na transportação da chuva e os sóis siameses agarrados na cintura da fruta ou engrampados no voo das aves — a migração dos crustáceos. Caminhávamos à procura do pão da linguagem na embocadura do porto, contrabandeamos retratos insolvíveis nas paragens, onde íamos semeando as plantações genealógicas da seca. 4A nossa sina é colar vírgulas em todos os nomes esdrúxulos nas estações do comboio e acentuações tónicas no cais dos continentes noturnos no desembarque dos camponeses. A trajetória moída para ser a língua do sal ou azul uniforme da Europa metropolitana no útero embrionário e marítimo que dá vida à Veneza das alucinações ― donde se julga virem todas as espécies in-vitro da experiência divina; ou ainda, da primeira América marcada com um xis num erro de cálculo na fabricação de impérios. 5Nenhum Cabo Verde por engano, que não seja tão-somente a demora longínqua do Cais Velho da Alfândega da Gamboa ao sacudir o arquipélago nos chifres das cabras. Elaboramos o abismo — a asa que queima a borboleta — por termos o chão efémero da aragem guardado entre as areias da praia de São Francisco e o fim do mundo. Evitamos a água da África, presumindo que toda a aritmética do azar na época sazonal da sementeira e a má-língua faz-se no derrube convencional do Pico de Antónia fresco na sua escama de animal aquático. 6Com o vento favorável, ondas mansas na proa e cheiro de mar ao bombordo, Praia é uma cidade Babilónica. Guarda os sonhos como se se tratasse de uma dança proibida e o peixe do aquário é o faraó desta beira-mar. Trata do que se tratar, em nenhum lugar se partilha o céu como na ilha de Santo Antão. A partição do pão respeita a regra da raiz quadrada e o bicho de casa tem isto de cor e salteado. É este animal que puxa o nosso mundo para à mesa, quando na verdade há um ovo que nasce da árvore do dragoeiro no Monte Gordo. A unidade da água e o frasco que tem da noite aprisionada recriam a evasão e o esforço da labuta. O ilhéu ergue sobre o seu continente de armação e dá soltura à fruta que se esconde na fundura do poço.

2. DO ALGARISMO ROMANO

7Correção da largada: um ponto no “i” grande e outro no travessão da barra que apoia a armação da chuva. Um grito de partida transformado num animal atormentado que escorre indo de encontrão contra o isolamento da ilha Santiago. Não de muito longe, uma mosca montada numa pedra respira a humanidade, explode ao entrar em contacto com o pulo do cordeiro [de Deus que tira o pecado do Mundo] na ponte velha de Vila Nova de vidro na água da praia da Gamboa. 8Quando definitivamente decidimos acelerar o relógio de corda: o fragmento da ilha tinha o globo terrestre prestes a rebentar na pupila e a fome muito rente ao chão da viagem. Gingava com o chão seco da sementeira — a pedir morfina nos ossos — dói-lhe a poeira que o rebanho pasta no som da rebentação das ondas, numa das mãos, vazia de barco atracado na loiça. Só de pensar no trajeto que é dobrar os mares numa colher que é levada à boca, inclina de cabeça invertendo para a fundura da queda [Há quem caia inteiro no buraco do botão da camisa]. 9Neste lugar do mundo, o fragmento vulcânico de ilha põe ovos de pátria, na tentação de semear o local de nascença nas locas da migração. O campónio passa a escavar toda a terra redonda com as unhas de garfo; enquanto os navios a vapor apertavam-se nas artérias do pássaro que transporta consigo num frasco de vidro. De cada vez que se aproxima do nada — enchendo a cabeça da formiga, com terra fértil do deserto da furtaria — desata a dar nó cego no atacador do sapato. 10A infinita circunferência de ter sempre o Sol a espiá-lo para dentro do crânio, afugentando os seus demónios ao bramir dos gados — rituais domésticos orquestrados, gestos repentinos de camponeses dando linha à pesca dos arbustos e de um pouco de lume de panela na bombagem amontada na caixa metálica do tórax deste homem de arrame. 11Ao afastar a luz da fundação do edifício o cansaço é igual ao sono. Um ingrediente gruta na parede roendo a miséria do casebre e os alimentos dos insetos. A bala alojada no chafariz da lâmpada da cozinha. Alguém teve a iniciativa de mascarar os retratos de família e polir o elmo da alegria na montra da vitrina. A porta fica perfeitamente aberta depois de duas voltas à chave, fazendo um bico de 180º ao redor da mesa e do almoço. 12Insistia a dona de casa: deixa-se perder a intimidade, quando não levamos à mão a cara. Esta era a maneira de não se fazer anos, naqueles tempos em que se perdia metade das coisas porque nunca foram inventadas. Côdeas, aparras, grainhas e ainda bocados de verão de antanho no paladar da velha apontado para o crucifixo de um Jesus que grita para dentro da garrafa.

3. DO ALGARISMO ROMANO

13De Lisbon hussardos ladrões do Infante Dom Enrique de sentinela na traseira do quartel a assistir o parto das árvores — a queda das frutas na hora exata da partida do comboio para à Sintra — o banho primaveril das putas do Parque Eduardo VII na chuva de abril. Haja paciência para aturar a virgindade dos pombos na praça Camões. Os recados líquidos do mercado da Ribeira traduzidos na míngua duma gota absurda do cavalo lusitano pontapeando uma bola de papel no corredor da psiquiatria e um pouco nas cãibras das gentes de Alfama ou na bagunça do Bairro Alto. 14Para enterrar os meus crimes em Lisboa, Tejo teria de ter mais água do que têm nas veias. E precisaríamos de mais espelhos de retrovisor para ver Lisboa grávida a desviar o trem da clarividência no passageiro de Cais de Sodré, a agiota dos ofícios. A cidade começa nestas horas a ter cheiro de refeição na descarga de unidades de medição na estação de Entrecampos; os vegetais voos de andorinhas e as sandálias de Fernando Pessoa penduradas na rodoviária a caminho do Porto. Dizia que ele tinha emprestado o cachimbo de madeira às gaivotas tresloucadas de Belém e que estas nunca o devolveram. 15Eugénio de Andrade, outro amigo, amuava com o atraso das locomotivas de Campolide; por causa, dos araquídeos bissextos que lhe subiam o telhado e de uns gatos-pingados no umbral do aquário, saltitando no chão de snack-bares do Bairro da Moraria. O cabo-verdiano empiricamente sem saber onde meter o pé bárbaro da saudade que o atolado a traqueia e os canais de retaguarda — áreas de retirada [é proibido a entrada de pessoas estranhas!]. 16A travessia do Tejo e uma sucessão de aves voando numa planície capaz de enterrar a ponte Vasca da Gama num galope equestre. É quando Rossio se faz erguer por cima da cadeira, ele parece metade com a Cidade da Praia e o restante com um peixe de ferro que rodopia no estendal do Campo Grande. 17Soltas as janelas, o cavalo lusitano desata a correr na linha imaginária do Equador interminável no telhado. Bairro Alto feito a lápis, um passo em frente Lisboa trepada nas suas varandas da Graça. São tamanhos os demónios que se apegam à armação da Ponte 25 de Abril que nenhum se esfalfa de tanto ver para o relógio. 18Chegar e ter a sombra como professor de cartografia no lado de fora da estrada a autoestrada rodopia numa teia de aranha. Mudar de roupa duas vezes tem sido difícil enumerar as tuas escapatórias assim de memória. Mania de que era possível iluminar o subúrbio da Grande Lisboa com uma faísca de luz retangular. Tudo de cabeça para baixo menos o ponteiro do relógio da estação de comboio de Santos e o pronunciamento do imigrante de Leste.

1 Introdução à Cabo-verdianidade

2 O Transbordo das Emoções

3 A Ancestralidade

4 A Viagem ao Redor da Mesa

5 A Outras Linguagens da Azáfama da Sina

6 A Originalidade da Urbe em Útero

7 A Via da Largada num Recorte de Papel de Parede

8 Contratempo do Relógio d’Água

9 A Procriação do Arquipélago

10 A Construção do Homem em Queda

11 A Ruína da Casa no Prato

12 Dar corda ao Conselhos

13 Caroços de Lisboa

14 Os Delitos de Violinam as Arruelas

15 Intimidades com Eugénio de Andrade

16 O Flashback de duas Cidades e Restantes

17 Cavalos Endiabrados Encarnados no Telhados

18 O Forasteiro o Regador de Jardins

Rony Moreira

Rony Moreira é natural da Cidade da Praia, Cabo Verde. Camponês, cronista, sociólogo e poeta. Autor do livro “Esticar o Infinito Até à Borda do Prato” (Rosa de Porcelana Editora). Venceu o concurso da Biblioteca Nacional na categoria Poesia, em 2013. Participou na antologia IMAGENS LITERÁRIAS – A Realidade e o Sonho, II Volume (Brasil).

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