o cânone
os poetas às vezes morrem
pelas razões mais estúpidas
falta de ar e febre em quartos
com vista para as escadas
ou enquanto a chuva cai
sobre os leões em roma
ou repentinamente
em casas de chá muito longe de casa
à espera dos pacotinhos de açúcar
que o empregado de mesa
tarda muito em trazer
quando já puseram a mão no ar
muitas vezes e continuam a ser ignorados
apesar de estarem a arder de febre
de vez em quando
morrem no próprio dia em que nasceram
setenta anos mais tarde
e alguém lhes guarda
a última fotografia
que tiraram para o passaporte
ou morrem afogados
em barcos que ajudaram a construir
mas nunca aprenderam
muito bem a navegar
e os seus corpos
levam muitos dias até dar à costa
os mitos dizem
que os seus amigos
não deixam os seus corações arder
até ao fim
às vezes não morrem de febre
pouco depois de missolonghi
não morrem quando a mão
risca o próprio nome na pedra em súnio
não morrem quando o tempo
começa a apagar o seu nome
que em alguns casos
em vida lhes disse muito pouco
têm tanta sede às vezes
que bebem até morrer
em cafés com vista
para a praça do comércio
em lisboa
ou morrem por falta de papel e caneta
são tão frágeis e vulneráveis
os meus poetas
chegam com as costuras a ver-se
vão-se embora pedindo quase nada
ou depois de terem perdido tudo
ou a morte dá com eles de olhos abertos
nas loucas noites de insónia
quando eles entendem
que para fazerem o seu trabalho
têm sempre de estar num extremo
ou noutro nunca no meio termo
as suas vidas são uma espécie
de contínua tortura do sono
é nesses intervalos que escrevem
enquanto sonham ser deixados em paz
para escrever em berlim
depois de anos de trabalhos
que lhes parecem intoleráveis
podem também morrer de cancro ou de exílio
ou porque têm de ficar petrificados
e pasmados com um nó na garganta
diante das pistolas de lord byron em koumpari
sem mais uma palavra a acrescentar
sobre este assunto
às vezes insistem em ser excessivamente cerebrais
e resolvem morrer antes da primavera
antes do nascimento das primeiras flores
ou porque por engano lhes vendem veneno
que eles tomam por distracção
ou vivem longas vidas impiedosas
ou ficam para sempre calados
pregados ao chão por uma caneta
que lhes trespassa um dos calcanhares
depois de terem enterrado tudo e todos
no gelo cortante
das suas palavras cheias de raiva
não se cansariam nunca
só poderiam ser calados assim
morrem a horas inesperadas
às quatro da tarde por exemplo
antes do rum com coca-cola
com a cabeça no balcão de alumínio
de um antigo café de província
ou de ataque cardíaco
tarde demais para poderem voltar à pátria
ou de propósito
num quarto de hotel em paris
afogando-se em palavras que os deixaram sem ar
ou que com alguma sorte os afogaram de ternura
morrem onde estiveram mais vivos
e onde foram mais felizes
por exemplo, a contar hexâmetros dactílicos
em são paulo
enquanto nos gravam longas mensagens
sobre filinto elísio
ou quando pararam de escrever
ou porque enlouqueceram
e as suas mentes se transformaram
numa escuridão impenetrável
lançando-se em estranhas traduções
de tragédia grega
no tempo que lhes resta
morrem com grande espírito de sacrifício
atónitos de terror
em revisões maníacas
quando percebem que aquela vírgula
que esteve sempre fora do sítio
vai ficar sempre fora do sítio
ou o fim chega-lhes porque
amam demasiado o ópio e os punhais
ou porque escondem a cabeça no forno
desaparecem os seus corpos
e parece que não os deixam em paz para desaparecer
sobretudo se morrem diante dos pelotões de fuzilamento
e os amigos os continuam a alucinar até ao fim
enterrados debaixo de que oliveiras
desta ou daquela ou da outra
alguma tempestade
seria a melhor explicação
da sua absoluta falta
o seu talento
para absurdos
desobedientes afogamentos
quando as autópsias revelam
que os seus pulmões
se inundaram das coisas esperadas
e ainda das intermináveis listas de palavras
Oxford, 16 de Julho de 2021

Tatiana Faia
Tatiana Faia é uma das editoras do projecto independente Enfermaria 6. É autora de cinco livros, entre os quais Um Quarto em Atenas (Prémio PEN Clube de Poesia 2019) e Leopardo e Abstração (2020). É doutorada em literatura grega antiga. Traduziu para português Homero e Anne Carson. Vive e trabalha em Oxford.