Confissão

Venci um cancro este ano. Soube que o tinha a 27 de Janeiro e recebi a nota de alta a 10 de Dezembro. Nunca falei disto em público. Pelo meio houve inúmeras batalhas. Há intimidades raras que me acompanharam (e que me acompanham). Uma delas foi a do Cotrim, sempre a cavalo e com uma lança aguçada ao meu lado. Foi ele que me ensinou toda a equitação dessa maravilhosa família que é o IPO. É a minha única notícia positiva do ano.

Hoje entendo melhor o que já confessei a amigos chegados: o Cotrim tinha um deus que era só dele. Passeava-se com ele escandalosamente, expondo-o naquele sorriso que desflorava incêndios. Agora deverá estar com ele a paparicar bushmills e a gozar com os encómios fáceis que todas as erupções põem em marcha. O Cotrim era – e é – uma paisagem de fundo que congrega segredos. Sempre nos ofereceu em silêncio a novela gráfica do mundo. 

Ele disse-me há sete anos que esta era a minha década. Acertou. Abriu os braços e mostrou-me que Lisboa é um texto de águas que se iniciam. Tornei-me alfacinha com ele. Mas quando estávamos no Porto ficávamos subitamente tripeiros. Se subíamos à Póvoa, dançávamos. Se penetrávamos no Roterdão confessava-nos que o alfabeto era um modo de rir sem parar. Cada romance que escrevi – na guarita que era a dele – irrompeu de uma troca de olhares repentina. Por vezes, bastava ouvi-lo a dilucidar o que é uma encomendação.

Retenho o entusiasmo com que ele pegou em mãos o que seria a comemoração dos meus 40 anos de vida literária. Um vulcão iminente. Haveria um jornal de folhas largas, haveria um simpósio, haveria livros (três volumes numa caixa) e mais um de poesia para oferecer aos circunstantes. As oferendas habitavam todo o vento que sacudia o Cotrim. Ele tratava as palavras ao jeito das gárgulas que nos olham de cima. Tinha guindastes para explicar o que é o amor. Bem sei que não existe um verbo para a saudade, porque ela é um poço que se afunda em altura.

Ao lado do nosso querido João Paulo Cotrim, estaremos todos de partida a invernar as asas para o grande transbordo. Com ele morreu também um pedaço enorme de mim. Ainda não sei como vai ser a agricultura da vida depois deste Dezembro maldito. Só sei que cada passo que continuo a dar é ainda uma promessa que lhe devo. Com ou sem Mymosa, continuaremos a nidificar os versos em branco. E a querida Isabel Amaral terá os abysmados todos ao seu lado para que a Abysmo refloresça nos céus crepusculares da Horta Seca que ele tanto amava.

Luís Carmelo

João Paulo Cotrim

Nascido em Lisboa, a 13 de março de 1965, teve um percurso marcado pela divulgação da banda desenhada em Portugal. Dirigiu a Bedeteca de Lisboa, desde a sua abertura em 1996, até 2002, tendo organizado diversas exposições, entre as quais ‘Jogo da Glória – O Século XX Malvisto pelo Desenho de Humor’. Escreveu novelas gráficas, ensaios, poesia e histórias para crianças e adultos. Foi jornalista e era editor da Abysmo. Criou, em 2020, “Torpor. Passos de voluptuosa dança na travagem brusca”, uma revista digital gratuita criada e disponibilizada pela editora.

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