‘Comboio Sem Paragem’

Passei a prestar mais atenção às rachaduras da vida
Aos mapas construídos pela queda de tinta na parede
Às rugas nas mãos a confundir as linhas da sina
Aos traços descontínuos apagados na autoestrada
Ao momento ofegante em que o pulmão não acompanha o passo
À erosão no papel dos cartazes publicitários 
Às cicatrizes que insistem em tatuar memórias 
À eterna partida de corações partidos
Ao Natal de pessoas inteiras em famílias fragmentadas 
Aos trinta minutos de espera entre o autocarro e o comboio
Aos vinte segundos atravessados por um comboio sem paragem
Ao poema que só nasce na impossibilidade de internet
Às burocracias adotadas e a promessa do visto
Ao amor como espera, paciência e suspensão 

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Sonhos lúcidos interrompidos deliberadamente 
Passei a prestar atenção às rachaduras da vida
A olhar nos olhos da Dor fiel que me acompanha
A compreender que ela tanto me oferece lágrimas como um sorriso
Passei a ler essa ferida contínua e partilhada
A entender que ela se estende na nossa pegada intransigente 
É tudo muito cruel para que nos continuemos a achar especiais
E o amor não serve apenas para isso
Já não temos tempo para isso
E nem o amor merece ser desperdiçado dessa forma 
Acho que fodemos isto tudo
E não podemos seguir sem olhar para as rachaduras da vida
Elas estão aqui a sussurrar-nos histórias em várias línguas 
A convidarem-nos a analisar a nossa tristeza comum nesta era de aquário 
O tão esperado momento real inevitável!
Preciso do vosso compromisso para desistir de desistir
Para deixar de fumar 

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Passei a prestar mais atenção 
E só a integridade nos permite tocar as rachaduras da vida
Só tirando a máscara podemos cheirar o seu bolor
Só o silêncio nos permite ouvir o seu barulho
Só as lágrimas nos permitem ver a sua cor
Só a displicência nos permite ser felizes
E eu não quero uma felicidade constante. 
(ainda é cedo para desejar bom ano?)

27/12/2020

Raquel Lima

Raquel Lima (Lisboa, 1983) é poeta, performer, arte-educadora, licenciada em Estudos Artísticos e doutoranda em Estudos Pós-Coloniais, em torno da oratura, escravatura e movimentos afrodiaspóricos. Tem apresentado o seu trabalho poético em vários países da Europa, América do Sul e África em eventos reconhecidos de literatura e performance. Lançou, em outubro de 2019, o primeiro livro e áudio-livro de poesia Ingenuidade Inocência Ignorância (BOCA e Animal Sentimental). Integra o NAC – Núcleo Antirracista de Coimbra, a Yanda Panafrikanu, a UNA – União Negra das Artes e o NUEPE – Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão.

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