De como descobrimos que a noite emana do toque do tambor e que a lua é uma ferida cíclica

(Atentemos ao fragmento de diálogo entreouvido ontem à noite)
_Sem dúvida, sem dúvida: a noite é quilombola.
Assim como é certo que alguém cravou a unha 
Na cor do céu da noite
E deixou lá uma ferida branca e crescente.
O que talvez seja menos evidente – 
mas, afinal, reconheçamos, nem tudo precisa sê-lo –
é saber que a sustentação da cor do céu da noite é feita pelos toques dos tambores, 
os quais, 
dessa forma, 
também tratam que a ferida não se espalhe:
a ferida cresce, se circunscreve e míngua.
Mantém-se, assim, a cor do céu que nos protege a liberdade e a fantasia.
Por isso, a lua, meus amigos, é cíclica como dor de amor.
O sofrimento causado pela ferida branca é estancado pelos tambores 
aquecidos nas fogueiras eternas dos quilombos.
Tambores que não cessam de tocar até um outro tempo colorir a aurora.
Resta-nos, nesse por enquanto
e sempre nos restará,
a dança.

De ke manera no dejkubri ke noite te emaná toke te tambor e ke lua ê um frida siklika

(Nô prestá tenson ness fragment de konversa entreouvide onte d´note.)
_Sim dúvda, sim dúvda: noite ê kilombola.
Assim k´menera é serte ke alguém kravá unha 
Ne kor de séu d´note
E el txá lá um frida bronk e krejssente.
ô ke talvej ê menuj ividente – 
má, afinal, nô rekonhesê, nem tude te presizá ser essim –
ê sabê ke sustentasão de kor de séu d´note ê fete pê toke de tambor, 
oj kuaij, 
dess forma, 
tambê te fazê kê kel frida ka espalhá:
kel frida tê krejse, tê sirkunskrevê e el tê kabá na nada.
Tê mantê, essim, kel kor de séu êk te protejê nôj liberdade e fantêsia.
Pôr isse, lua, nhêj amigue, ê síklika moda dor d´amor.
kel sufrimente kauzode pe kel frida bronk ê estonkode pê kej tambor 
akiside ne kej foguera eterne de kej kilombe.
Tambor k´ne de pará de toka atê um ote tempe kluri aurora.
Tê restá nôj, nesse pur inkuente 
e sempre te restá nôj,
dansá.

Memorial de uma oração por um amor com flores

Os olhos dos outros regam a nossa existência.
Os olhos do jardineiro desconfiam:
— O marido é ou não é o homem que sabe fazer a mulher feliz?
Perguntam-me esses olhos com um início de indignação:
— Então, por quê? Por que trabalho para fazer bonito este jardim?
Respondo, entre tímida, estiolada e resoluta,
passeando com os olhos no rosto dele,
que um belo jardim me ajuda a ter esperanças
de que o marido aprenda a amar com flores.
Entendemo-nos, pois:
gente com gente, trabalho com trabalho.
Choro minhas pitangas por cá 
                     [quando o trabalho não dá certo.
Certamente ele chora as dele em algum lugar
                                      [longe dos meus olhos.
Não fosse assim,
não teríamos esse diálogo de olhos tão claros
                                                     [um ao pé do outro.
E cheios de pétalas de rosas.
O jardineiro espalha o adubo sobre a terra
(um tom de marrom a mais que o adubo).
Parece um balé de cores próximas.
Um balé de movimentos leves
executado delicada e magicamente pelo jardineiro
com o aparente desauxílio da força muscular.
Meus olhos marejam sobre terra firme e adubada.
Os olhos dos outros rezam a nossa existência.

Memorial d´uma orasão pe um amor ke flor

Kej oi de otxe te regá nôj existênsia. 
Kej oi de kej jardiner de deskunfiá: 
— Meride ê ô ká ê kej home ek sabê fazê sêj amdjer fliz? 
Te perguntéme ke ex oi kum inisie  de indignasão: 
— Enton, mod kê? Mod kê um te trabalhá pe fazê bnite ess jardim?
Um tê respondê, entre tímida, xtiolode e rsoluta,
te pessiá oi ne sê roste,
ke um jardim bnite te ijdame a ter xperensa.  
de ke kel maride te prendê a amá ke florej.
Nô te intendê, poij: 
gente ke gente, traboi ke traboi.
Um te txorá nhes pitangaj prei 
                     [kond traboi kê te dá serte. 
Sertamente el te txorá kej de seu ne algum lugar 
                                      [longe de nhej oi.
Não fosse essim,
nô ka teria ess konversa de oi tão klor 
                                                     [um  ne pê d´ote.
E xei de petalaj e rosaj. 
Kel jardiner te xpalhá adube sobre kel terra
(um tom de marrom a mej ke kel adube).
El te perse um balê de korej próximaj.
Um balé de movimentej lêve
exekutode  delikod e magikamente pe kel jardiner 
ke aparente auxilie de forsa mujkular. 
Nhej oi te marejá sobre kel terra firme e adubode. 
Nhej oi te rezá noj existensia.

Observação do deslocamento constante das tropas inimigas  

(A partir de Birago Diop)

O vento varre
leve 
a folha rente ao chão

O poema é um rio que começa na minha cabeça

A quem essa água pertence?

O cabelo molhado dele: 
um oceano inteiro.

As ondas que se formam nas águas têm fundamento.

O cabelo dele não é liso.
E o amor também não é:
avista-se uma grande onda sob um vulcão.
Mal se vê o coração – pobre barco que saiu por uma ilusão simples: pescaria ou migração.

Irrompe 
no aparente silêncio da janela contemplativa:
brados retumbantes de crianças em vídeos nas redes sociais da vizinha.
Espio à distância;
gritam e choram em língua estrangeira.
Entendo que estão em grande sofrimento. Meu corpo inteiro se torna ventre e quer abrigá-las.

A paz e a segurança é uma caixa d’água sobre nossas casas antes que venham os helicópteros inimigos e a artilharia aérea.

Até mês passado eu não sabia o que era “fósforo branco”.
Na prática, continuo sem saber.
É temporário.
Segundo o invasor, todo território deve ser conquistado.
Por alguma razão, armas seguem sendo aprimoradas.

O vento não é neutro. 
A quem obedece?
Se você prestar atenção, ele conta tudo.

Fecho a janela
e o poema a céu aberto.
Mas o coração está no exílio!
Camarada Coração.

Observasão de deslokamente konjtante de kej tropa inimige  

(A partir de Birago Diop)

Vente te berrê
lêve 
Kel folha rente ne txon    

Kel poema ê um riu êk te kmessa ne nhe kabessa 

Kem kê done desse aga? 

Kel kabel moiod del: 
um oseone inter.

Kej onde ek te formá ne kej aga tem fundamente. 

Sê kabel ka ê lise.
E amor tambê ka ê:
gente te oiá um grende onda sob um vulção.
Mal te dá pe oiá kel kurasão – pobre barke êk sei pur um ilusão peská ô imigra. 

Te irrompê 
ne kel aparente silênsie de kel janela kontemplative:
barduj retumbantej de kriansaj nuns vídie ne redej sociaij de vizinha.
Um te xpiá à distânsia;
ej te gritá e ej te txorá num líga ejtranger.  
Te intendê kej te ne grande sofrimente. Nhe korpe inter te vrá ventre e el te krê abriguej. 

Paz e seguransa ê um kaixa d’ága sobre noj kasa antes bem kej helikoptre inimigue e artilharia aérea. 

Até mêj passode mi kê sabia uke era  “fósfro bronke”.
Ne prátika, um te kuntinuá sim sabê. 
Ê temporárie.
Segunde invasor, tude territórie te devê ser kunkistode.
Pê algum razão, armaj te sigui te ser aprimorod.  

Vente ka ê neutre. 
A kem el te obedesê?
Se bô prestá tenson el te kontá tude. 

Um te ftxá jnela
e kel poema a céu aberte.
Má nhe koração te ne exilie!  
Kamarada Kurasão.

A impossibilidade do poema fica declarada ao pé da página

Guardavida y Coração de Pássaro
comp-
artilharia-
m
Liberdade Clandestina
Awañene[1]
Awá[2]
Aw[3]

[1] Língua de gente
[2] Gente
[3] Tradução cultural impossível para o português a partir da língua dos Awá, que vivem no Quilombo Maranhão. Mesmo à força, como o foi no caso dos vocábulos anteriores.

Kel impossibilidade dum poema te fka deklorode ne pê de página

Guardavida y Kurasão d´Posse
komp-
artilharia-
m
Liberdade Klandestina
Awañene[1]
Awá[2]
Aw[3]

[1] Línga de gente
[2] Gente
[3] Tradusão kultural impossível pê portuguêj a partir de língua de Awá, ek te vivê ne Kilombe Maranhão. Mesmo à forsa, moda foi ne kase de kej vocábulo anterior.

Traduson de português Márcia C. Brito

Fotografia: Mamadou Ba

Camila do Valle

Camila do Valle publicou, em 2022, uma antologia bilíngue de poemas na Argentina chamada La costumbre de pintar (Editorial Nebliplateada). Integrou o coletivo Eloisa Cartonera a partir de 2004, através do qual se publicou Perlas chinas, edição Bienal de São Paulo de 2006, e Rockland, Minas Geraes. Pela editora Siesta, teve Mecânica da distração: os aprisântempos traduzido ao castelhano em 2005. Integra antologias de poesia latino-americana no México, Peru, Chile e Alemanha. Em Espanha, está publicada em Otra línea de fuego – 15 poetas brasileñas ultracontemporáneas, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda. É professora de Literaturas de Língua Portuguesa na UFRRJ: em 2023 publicou, em parceria com a antropóloga Cynthia Carvalho Martins, um relatório para a Unesco em que trata da intolerância religiosa no Brasil.

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