CONCHAS DO MAR SÃO OSSOS

corpo ancestral carrega em cada poro memórias
caminhos
rio em sangue negro

conchas do mar são ossos
no horizonte guardo a minha casa

criança, eu me perguntava quem estaria para além da costura do mar

cacos de memórias em cada grão ossos
há alguém aí?
ouvem-me?

ossos
memória
sal
esse cheiro é antigo 

KONXA DE MAR Ê OSSE 

korpe ansejtral te karregá ne kada poro memóriaj
Kaminhuj
rio em sangue negre 

konxa de mar ê osse
ne horizonte um te guardá nhe kasa 

minie, um tava pergunta ke ek tava além de kel kustura de mar 

koke de memória em kada gron d´osse 
ei tem gente? 
bzot ti te uvime? 

osse
memória
sal
esse txer ê antigue

FRANKENSTEIN AO SUL

abro o google maps para procurar onde fica Arcangel descubro que fica na Rússia
em direção à Groelândia
uma imensidão branca no mapa

nada névoa neve

sonho científico de ser capaz de atravessar a pé aqueles vastos caminhos
até voltar à casa
casa é sul

amplio o mapa virtual
e vejo um pin
apontado para o nome CASA no sul do norte

realizo que não há mais uma casa
resta-me apenas a possibilidade de reinventá-la até que todas as
combinações se esgotem
até que sobre apenas a marca
de todas as casas, de todos os lugares
por onde estive
sinto uma empolgação triste
quem sabe se Frankenstein
não sentiu a mesma empolgação triste quando finalmente a Criatura veio à vida?

põem-me no limiar das fronteiras reinvento o centro
construo minhas geografias [paga-se o preço a tudo]

rasgo sangro costuro

há vida no fundo das cicatrizes um andar meio manco
meio manso
meio insistente

[a criatura vai viver
escuto ao longe, muito longe]

lembro-me sentada nesta cadeira de museu de um final de tarde
na praia de Tambaú
o mar parece calmo 

FRANKENSTEIN AU SUL 

um te abri google maps pe expia ondê de fká ArKangel um deskubri kel te fka ne Rússia
em diresão à Groelândia
um imensidão bronke ne mapa

nada névoa neve 

sonhe sientífike de ser kapaz de travessá à pe kej vaste kamim
atê voltá pe kasa
kasa ê sul 

um te ampliá kel mapa virtual 
e um te oiá um pine
te apontá pe nome KASA ne sul de norte 

um te realiza ke ka tem maj um kasa
te resteme apenaj pussibilidade de reinventel atê ke tude 
kumbinasão esgotá 
atê ke sobrá apenaj um marka
de tud kasa, de tude lugar
ondê kum tive 
um te sinti um impolgasão trijte 
kem sabe se Frankenstein
ke sinti ess mejma empolgasão trijte konde finalmente kel Kriatura bem a vida? 

pome ne limiar de fornteiraj kum te reinventa kel sentre
um te konstrui nhej geografia [gente te pagá prese em tude] 

um te ratxá sangrá kosturá 

tem vida ne funde de kej sikatrij um andar mei monke
mei monse
mei insijtente 

[kel kriatura te bé vivê 
um te uvi de lonje, mut lonje] 

um te lembrá sentode nesse kadera de museu de um final de terde
ne praia de Tambaú 
mar te parsê kalma 

O QUE APRENDI COM AUDRE LORDE ATRAVÉS DE UM SONHO

imagino que respirar pela primeira vez seja semelhante a estar se afogando
tremores e espasmos sufocam o corpo até percebermos que somos feitas

de algo mais profundo
e o elo que combina vida e morte estoura

vejo os pedaços de corpo transmutados ainda opacos
de início sempre lhes falta alguma coisa por isso nos debatemos

na tentativa que nesses instante de ebulição algo entre desejo e fé aconteça
e a vida e a morte
com os seus olhos de gata selvagem pisquem lentamente na nossa direção

mas como explicar para algumas de nós que respirar e sufocar
tem peso a chumbo
e para algumas mães

que entre a vida e a morte de seus filhos
está a decisão de um fuzil
que as coisas à nossa volta queimam e cheiram mal
mas isso não nos define
todos os pequenos pedaços transmutados precisam ser erguidos para essa
monstruosidade andar
para algumas de nós desejo e fé não será o suficiente
caso as nossas garras não estejam à mostra
a temporada de caça começará antes do habitual

como eu explico para as minhas irmãs que os fios oxidados que costuram
as nossas peles em carne-viva
não é o maior dos problemas

quanto se perder nas conversas vazias de um sistema em autocombustão
não se distraiam

tremores e espasmos abrem o corpo em ebulição e os olhos de Suçuarana
refletem para dentro alumiando o que foi opaco
o movimento é de retomada

e cada pulsar de fôlego precisa estar em prontidão 

UKÊ KUM PRENDÊ KE AUDRE LORDE ATRAVÊS DUM SONHE 

um te imaginá ke respirá pe primer vej ê semelhante a estod afogode 
tremores e espajmoj te sufoka noj korpe atê nô persebê ke noj ê fete 

d´algum koza mej profunde
e kel álo ek te kumbiná vida e morte te xtorá 

um te oiá padose de korpuj tranjmutode inda opakej 
de inísie sempre te faltej algum kosa e pur isse no te debatê 

ne tentativa de nex instante de ebulisão entre alge e fé te kuntsê
e vida e morte
ke sij oi de gosta selvagem te piska lentamente ne noj diressão 

má kmanera explika pe algunj de noj ke rejpeirá e sofoká
tem pese kel txumbe 
e pê alguns mãe 

ke entre vida e morte de sij fidje 
te kej sisão de um fuzil 
ke kej kosa a noj volta te kemá e te txerê mef 
má isse ke te defini noj                 má isse ke te defini noj
tude kej pekene pedosse transmutode te presiza ser  erguid pe esse  
monstruosidéde andá
pê alguns de noj deseje e fê ká te bé ser sufisiente
kase noj garraj ká estiver à mojtra 
temporada de kassa ti te bem kmessá antes do habitual 

manera kum te bem explika pe nhej irmâ ke kej fio oxidode kej te kusturá 
noj pele em karne vive 
ká ê maior de noj prublema

konde gente te perdê ne kej konversa vaziu de um sistema em autokombujtão 
ká bzot distraí 

tremores e espasmos te abri noj korpe em ebulissão e kej oi de Suçuarana 
te refleti pe dente u kê foi opake 
ess movimente ê de retomada 

e kada pulsar de fôlege te presizá estod em pressizão 

Traduson de português Márcia C. Brito

Hannah Bastoos

Hannah Bastoos é paraibana e mora em Guimarães, Portugal. Licenciada em Estudos Portugueses e mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade do Minho. É criadora, facilitadora e curadora do Mulheres do Atlântico, um clube de leitura dedicado às literaturas africanas e afrodiaspóricas produzidas por mulheres. Produtora cultural no Minha Poetry Slam e do evento Mulheres do Atlântico — Nossa Literatura. É escritora e tem conto e poemas publicados em Antologias e Revistas Literárias. Os poemas acima fazem parte de seu primeiro livro que está no prelo. 

#003