A agenda global de vozes treinadas para viralizar o medo, recorrendo a técnicas da Programação Neuro-Linguística e da oratória fascista está bem à frente dos olhos. Parece fácil que qualquer saudosista do império, se ache no direito a ter o seu zoo humano privado, em sintonia com o mero capricho e com a hegemonia do grande capital. O que se evidencia é uma incisiva normalização desta armadura discursiva em plena praça pública, que é ilegal e transgride regras da cultura política, o que implica redobrado ginásio crítico, se queremos evitar a ratoeira.

Os poetas, primeiros a ver, ocupam altos cargos nas ruas da cidade, enchendo de alma os passeios fartos da racionalidade arrogante do carisma vazio. Na secção Poesia e poética, francisco thon atira “e tu, tu não sentes, pá?”, dando a ler a experiência de migração em Portugal, tema presente em Ana Luiza Tinoco, Carla Muhlhaus e Carol Braga, para quem o oceano abre a possibilidade de partilhar. O fluxo da viagem sente-se na poesia de Pedro Loureiro, Cláudia Köver e Dulce Semedo, ancorados à frágil segurança das memórias. Guilherme Gontijo Flores leva-nos no seu diário por Moçambique adentro até ao coração da língua portuguesa, diversa consoante a pessoa que a fala. Lagui Romero ilumina, através da fotografia, a vida no Caribe, onde a tensão cultural permanente entre símbolos africanos e ocidentais parece resultar numa criatividade única.

Ana de Santana e Ashraf Fayadh abordam criticamente o exílio: a primeira investiga lucidamente o contexto sociopolítico angolano e o segundo, nascido na Palestina e refugiado na Arábia Saudita, dá a ver os mecanismos de opressão sobretudo relacionados com a exploração do petróleo. Sobre o território palestiniano, invadido, colonizado há tempo demais por uma guerra selvagem, a poeta galega Nieves Neira Roca escreve um poema vocal, de megafone em punho, sobre a promessa da poesia quando confrontada com o sofrimento mediatizado por ecrãs. Hannah Bastos, Flávia Six, Ariana Giselle Sanches e Bruna Carolina Carvalho levantam potencialidades da experiência feminina frente ao jogo paternalista das “nações falsas”, como se lê em Maria Giulia Pinheiro. 

Valódia Monteiro performa, quase a todo o momento e verso, para essoutro, provocando-o, implicando-o na construção de uma sociedade justa. Nota-se em Antonieta Félix, estreante no campo da poesia, influência da oralidade, derivada, porventura, da sua experiência como contadora de estórias. Já os poemas de Ramiro Torres são diamantes surrealistas de um poeta já publicado pelo Grupo Surrealista Galego. Em Elisabete Marques há uma linguagem condensada onde jogam metáforas sobre o papel da mulher e o lugar do mundo no microrrealismo da mesa, com uma voz que cintila os ciclos impiedosos da terra. Estes ciclos são, também, aqueles que trazem esperança, quando flores brotam.

A metáfora de que D. Sebastião está morto releva-se dos poemas de Camila do Valle, Orálio Mendes Katchunkuró e Pedro Bastos. Estes autores centram a sua poética nas relações que os sistemas colonizadores estabelecem com os sistemas colonizados, expondo o chão comum da espécie humana. Tema que percorre, aliás, toda a pesquisa e obra que Heiner Müller produziu e um dos sentidos do conto de Fernando Pinto do Amaral: devotar-se à liberdade de viver segundo a nossa natureza. A arte poética pode ditar a falência das regras que a maquinaria da ignorância pretende impor, com a sua retórica deliberadamente provocadora e ambígua, a qual não deverá ser consentida numa sociedade que se diz culta.

Na secção Viver poeticamente, Milene Vale trabalha a ideia de cultura a partir da acepção de Bento de Jesus Caraça, para quem alguém culto:

1) tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence; 2) tem consciência da sua personalidade e dignidade que é inerente à existência como ser humano; 3) faz do aperfeiçoamento do seu interior a preocupação máxima e fim último da vida.

Caraça, 1939

Márcia C. Brito e Jair Pinto, no seu artigo, sinalizam a importância de projetos culturais e artísticos que criem espaço efetivo nas comunidades para a participação e aproximação das pessoas – sem sacrificar a beleza –, o que faz desvanecer o efeito paralisador da polarização. Rita Dias elabora, no seu ensaio, uma reflexão crítica sobre os subsídios das redes sociais para o desenvolvimento pessoal, apontando para o ato de “desligar-se” como um direito ao silêncio e à solitude analógicos, que ajudam a aprofundar a reflexão, a florescer para a interioridade e a criar voz própria. É este valor humano – intrinsecamente humano – que é negado propositadamente de cada vez que se ouve mais um ataque ad hominem, colocando em dúvida o caráter de alguém e apontando o dedo a um inimigo comum sem provas factuais.

A identidade, a ideia que temos de nós próprios, muda consoante as circunstâncias e a singularidade de uma mão que escreve e uma boca que canta um poema desfaz as categorias generalistas, impedindo que resvalem para o fundamentalismo autoritário. A propósito da linguagem enquanto tecnologia para a comunicação e a colaboração, Salikoko Mufwene nota, no seu artigo, que cada língua sofreu processos de colonização num determinado momento da sua história e propõe a ecologia da língua, na qual a evolução das línguas é influenciada pelas relações sociais na comunidade, tal como num ecossistema. Portanto: o português, o crioulo e o galego têm a mesma potencialidade expressiva e, nessa medida, o crioulo é uma língua como qualquer outra língua ocidental.

Na secção Viva Luís Carmelo!, a txon #003 homenageia Luís Carmelo por encorporar ao longo da sua vida e obra um silêncio que lê o outro. Andreia Azevedo Moreira, Francisco Resende, João Nogueira, eu e Mónia Camacho encetamos um diálogo em torno do sentido e ofício do poeta e escritor eborense em prol da cidadania cultural. A língua portuguesa perdeu um leitor afi(n)ado e cultor resistente, mas herda os seus cerca de 65 livros publicados. Um território de liberdade para reescrever a realidade na oficina de um amor maior. Porque amar é antídoto do pânico, do medo de ter medo que se alimenta dos restos da destruição. Amar, amar uma ideia, amar alguém, amar o que se faz.

A diferença entre duas pessoas já é abismal que baste, para que o valor da subjetividade se dilua na cegueira nacionalista ou no cosmopolitismo incolor. Viver com a diferença requer aprender o que nos diferencia e o que nos une. No caso da txon, unidos pelo poder da palavra poética. Mais agora, dando as boas-vindas ao conselho editorial que integra investigadores e cultores de diferentes países que se compreendem em português: Fernando Pinto do Amaral, Genaro da Silva, Inocência Mata, Manuella Bezerra de Melo e Pedro Eiras. A vida sonora do ritmo poético faz arrepiar o calafrio do medo.

José Oliveira Pinto

#003