Franklin
Os vagões no terminal vazios com estacas
Feitas da mesma madeira que transportam em
Breve de madrugada em direcção do porto de mar
O mesmo que traz em cada vaga de Inverno
Tantos troncos polidos vindos por rios têm
Formas descritas em livros de anatomia animal
Ou do corpo humano ilustrado desde muitos séculos
Atrás e essas imagens perduram na cabeça de um
Tolo que as viu um dia na biblioteca quando
Era ainda um pobre apenas moço de recados
Que o tempo fez que fosse afastado dos afazeres
Ordinários nas quintas todos os dias sem contar
Os feriados reservados para ver o corpo pregado
Numa cruz diante das preces e do jejum colectivo
De choro e pranto e ele apenas de boca aberta
Sem saber rezar como os outros de joelhos
E para ele também olhavam por coitado néscio
E ele de boca aberta fixado no corpo escorreito
Mais tarde a andar pelo mar empurrado
Contra as rochas os penedos até à praia e lá
Em repouso ficava seco e mais pálido com o dorso
Curvado como um cão com frio quando dorme ao
Relento.
12/10/2023
Franklin
Kej vagão ne terminal vaziu ke ejtaka
Fet de mesmo madera êke te tranjportá em
Breve de madrugada ne diresson de porte de mar
Kel mejmo êke em kada vaga de Inverne
Tonte tronke pulide bind pur riu têm
Formaj deskrite em livre de anatomia animal
Ô de korp humane ilustrode desde txeu sékluj
Atráj e ex imagem tê perdurá ne kabeça dum
Tole êke oiéj um dia na biblioteka konde
El era inda um pobre apenaj mussim de rekode
Ke tempo fezê kom ke fosse afostod de sij mandod
Ordináriuj ne kej kinta tud dia sim kontá
Kej feriod reservod pe oiá kel korp pregode
Num kruj diante de kej présse e de jejum kolective
De txore e prante e ele sô de boka aberte
Sim sebê rezá moda kej otxe de joelhe
E pe el tambê êj tava oiá pur kuitóde néjsie
E el de boka aberte fixode ne kel korpe perfeit
Mêj terde te andá ne mar impurrode
Kontra kej rotxa kej penede atê praia e lá
Ne repouse el tava fká sék e pálido ke dorsse
Kurvode moda um kotxorre ke friu kond el te durmi au
Relente.
12/10/2023
IV Império (em curso)
Em frente do mar na ponta da terra a sul
Sentado a cismar a cada onda contra a rocha
Espera para continuar a empresa milenar
Guiada por tudo menos vento menos amor
Só teimosia e lastro fruto da côdea recessa
Na mão um punhado de unhas roídas de manhã
À noite dispersa ali o dia todo em curso
Romano presbítero sob o sol que cega sem fim
Estende-se por água a estrada feita a pé
Desde o vatícinio central onde repousa um corpo
Pesado e ordena a ferro e fogo uma investida
Sinistra que o IV império há-de queimar até ao
Fim do mundo.
13/10/2023
IV Impérie (em kurse)
Em frente de mar ne ponta de kel terra a sul
Sentod tê sijmá a kada onda kontra rotxa
Esperá pê kuntinuá kel impreza milenar
Guiod pur tud menos vente, menos amor
Sô teimusia e lastre frute de kôdea resséssa
Ne mon um punhod de unha ruid plumnhá
De noite te dispersá lá kel dia tude em kurse
Romane presbítere sob sol êke te segá sim fim
Te ejtendê pur ága kel estrada fet a pê
Dejde kel vatisinie ondê te repouzá um korp
Pezode e ordená a ferr e fogue um investida
Sinistre ke kel IV impérie há-de keimá até
Fim de munde.
13/10/2023
Fode Marítima
Esse sabor da água
A cano de chumbo
E os remoinhos que se evitaram
Nas correntes marítimas
Para lá da lomba da terra plana
Fizeram feridas não só nos pulsos
E tornozelos
Por coincidência análogas
Às chagas de Cristo.
A visão raiada de sangue
O cheiro da linhaça da calafetação
Impediram por séculos que o palato
Identificasse o sabor da putrefacção
Do espírito que nos conduzia
Sem remédio
Ao crime.
Do livro Souvenirs Satânicos
Fode Marítima
Ess sabor da ága
A kane de txumbe
E kej remoim kej evitá
Ne kej korrente marítima
Pra lá de kel lomba de terra plone
Ek fzê frida não sô ne pulse
E tornozele
Pur koinsidênsia análogaj
À kej xaga de Krijte.
Kel visão raiod de séngue
Kel txer de linhaça de klafetasão
Impedi pur séklus kê kel palate
Identfikésse kel sabor da putrefassão
De kel xpírt êke tava kundizi nôj
Sim remêde
Au krime.
E nada mais deveriam ter feito
As miniaturas dentro dos aquários.
A luz arqueada encandeia os peixes
de frente há uma penha grande
por onde o sol costuma aparecer
como os autocarros por volta
das seis sete da manhã.
As escolas e os ninhos gigantes
cheios de vespas nas cabeças das árvores.
Não deixam sentar as velhas à janela
ainda que tenham costurado todas as feridas
dos joelhos
das calças.
Foram para o mato
arrearam praias
arearam meias
descalçaram os pés
molharam as mãos
peidaram-se nos trópicos.
E nada mais deveriam ter feito.
Do livro Piche
E nada mej ej divia ter fet
Kej miniatura dente de akuarie.
Kej luz arkeod te inkadeá kej pexe
de frente há um penha grênde
pur ondê sol te kustma perssê
moda kej autukarre pur volta
de seij sete de plumnhá.
Kej skola e kej nim gigante
xei de vejpa ne kabessa de kej arvore.
Ka te txá sentá kej velha ne janela
inda kej te tem kujturod tud kej frida
de juêi
de kej kalssa.
Ej bei pe mei de mote
ej arreá praiaj
ej arreia meiaj
ej deskalssá pê
ej moiá mom
ej peidá ne trópikuj.
E nada mej ej divia ter fete.
Traduson de português Márcia C. Brito
Pedro Bastos
Pedro Bastos (Portugal 1980) é artista visual e cineasta. Os seus filmes Ao Lobo da Madragoa (2013), Cabeça D’Asno (2016), Ambulatório Através da Poesia de Augusto dos Anjos & António Nobre (2019) e Flyby Kathy (2023), têm sido apresentados em vários festivais nacionais e internacionais, tais como IFFR-Internacional Film Festival of Rotterdam. Participou na Biennale d’Art Contemporain – Jeune Création Européenne 2015/17. Teve a suas obras expostas em instituições nacionais e internacionais, como Kunstbygningen i Vrå – Museum of Modern and Contemporary Art (Dinamarca). Participou nas residências artísticas da Contextile 2022 – Bienal de Arte Têxtil Contemporânea. Publicou os livros Piche (2020) e Souvenirs Satânicos (2023).