OFÍCIO DE LER O OUTRO COMO A VIDA

Cuidar do mundo é viajar para todos os lados ao mesmo tempo

O sumo da história é a longa caminhada que é percorrida por duas vezes ao mesmo tempo. O projecto é o filho mais elaborado deste duplo modo de ser. Um fado que permitirá, a breve trecho, saborear a capacidade de antecipação. Prever é uma consequência de quem aprende a fazer duas viagens ao mesmo tempo: uma dessas viagens através do olho do corpo e a outra através do olho da mente. 

Uma e outra juntando o mesmo sangue à música da seda que os jovens druidas, pintados com as escamas dos peixes, aprendiam a manipular com mais destreza.

Cuidar do mundo é viajar para todos os lados ao mesmo tempo. A evolução é apenas a perspectiva ou, se se preferir, a memória do homem que bebe na foz do rio para saciar a sua sede universal. Quando cumpre o objectivo, percebe cristalinamente a forma do futuro e domina a besta que, momentos antes, convivia alegremente com o desconhecido.

O fogo acende o dia ao meio da noite e os pássaros escondem-se nas trepadeiras do tempo para dormir longe das arenas do grande circo. “Sapiens” é aquele que domina o fio das suas músicas e dos seus silêncios (ressonância longínqua do diapasão dos deuses).

Dákado, “cidade jardim”

Do inédito AS CIDADES IMAGINADAS

Luís Carmelo (1954-2023) nasceu em Évora em 1954. Doutorado em semiótica pela Universidade de Utreque na Holanda, é neste período, em abril de 1984, que a Galerie Tribe 1, em Amesterdão, recebe o jovem artista eborense, então com 29 anos, para apresentar a performance Het Schrijver is DoodO Escritor Está Morto (traduzido do neerlandês). Trinta e nove anos volvidos, os relatos da morte do jovem prestidigitador não virão, no olhar de João Nogueira, a revelar-se exagerados: afinal, conforme viria a escrever Luís Carmelo, o ‘jogo da morte a cair dentro da vida‘ é também o ‘jogo da vida a cair dentro da morte‘” (Gnaisse, Abysmo, 2015, pp.59-60).

Na mostra na Galerie Tribe 1 participaram nomes reconhecidos da diáspora portuguesa nos Países Baixos, nos anos 70 e 80, comunidade inicialmente constituída por herdeiros do Maio de 68, expatriados, desertores e refractários da guerra colonial. Além de Luís Carmelo, o cartaz integrava, entre outros, José M. Rodrigues, José de Carvalho Guinapo (1949-1991), Maria Beatriz (1940-2020) e Vítor Pomar. A sua estreia literária acontece em 1981 com o livro Fio de Prumo. “Tinha pressa”, afirma Nogueira, e, por isso, a sua produtividade fez com que ao longo de perto de 42 anos de vida literária, o resultado seja cerca de 65 publicações. A vasta obra de Luís Carmelo atravessa géneros literários e está editada em Portugal, no Brasil, em Espanha, na Holanda, no México e na Colômbia.

Estão publicados os seguintes romances: Entre o Eco do Espelho (1986, Peregrinação; tradução inglesa parcial, Revista New Wave, 20, Universidade do Colorado); Cortejo do Litoral Esquecido (1988, Vega); No princípio era Veneza (1990, Vega; 2ª edição, 1997, Vega); Sempre Noiva (1996, Vega); A Falha (1998, Editorial Notícias, Lisboa; 2ª edição, 2001, Planeta Agostini; 3ª edição, Editorial Notícias; tradução espanhola, La Grieta, 2002, Hiru Argitaletxea, Hondarribia; romance adaptado ao cinema por João Mário Grilo em 2002); As Saudades do Mundo (1999, Editorial Notícias); O Trevo de Abel, (2001, Editorial Notícias); Máscaras de Amesterdão (2002, Editorial Notícias); O Inventor de Lágrimas (2004, Editorial Notícias); E Deus Pegou-me pela Cintura (2007, Editora Guerra e Paz); A Dobra do Crioulinho (2013, Quidnovi, Lisboa); Gnaisse (2015, Abysmo, Lisboa; edição brasileira: 2017, Editora Jaguatirica; Ediciones Uniandes, 2022); Por Mão Própria (2016, Abysmo; Ediciones Uniandes, 2022); Sísifo (2017, Abysmo; Ediciones Uniandes, 2021. Livro recomendado em 2018 pelo Plano Nacional de Leitura); Cálice (2020, Abysmo. Romance finalista do prémio PEN/2021); Visão Aproximada (2022, Abysmo); Trílogia de Sísifo (2022, Ediciones Uniandes) e O Planisfério (2023, Guerra & Paz).

De poesia, encontram-se publicados os volumes Fio de Prumo (1981, Terramar), Vão Interior do Rio (1982, Atelier 18), Ângulo Raso (1983, Atelier 18), Mymosidades (2015, Nova Mymosa), As Mialgias de Agosto (2015, Nova Mymosa), Extintor de Achados (2017, Douda Correria), Tratado (2018, Abysmo. Livro recomendado em 2018 pelo Plano Nacional de Leitura. Livro finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d´Escritas-2019), Ofertório (2018, Nova Mymosa), Anatomia (2019, Nova Mymosa), O Pássaro Transparente (2019, Nova Mymosa), Lucílio (2022, Nova Mymosa) e Biografia do Mundo (2022, Abysmo).

“Não podemos escrever coisas que se afastem muito da nossa mundivivência” é o que Francisco Resende recorda de ter ouvido de Luís Carmelo numa tarde de sábado, a quem escreve, agora, “entre o sonho e a possibilidade”:

“Uma tarde de sábado no Possolo, nós dois à mesa da sala, a Lira soltando arpejos numa almofada indiferente às valsas que suspendiam os pêndulos e ludibriavam os contratempos do mundo. No rescaldo comovido do meu espanto (lembra-me um sonho lindo, quase acordado), ainda remataste: não podemos escrever coisas que se afastem muito da nossa mundivivência.

Pastoral ondulava em fundo, concertava-se com as dádivas que há muito me trazias, e eu – de ouvido à escuta e mão no queixo, como que a fixar cada acento, cada pausa, cada semifusa, repetidamente esmagado durante esse tempo ínfimo que não parecia ter fim –, eu continuo a ver-te na minha frente a desfiar generosamente o mistério desse real onírico (houve realmente um sonho) também com as mãos dançantes, pulsantes, arrebatadas: o vulto alado de um grande maestro (Bernstein, sem dúvida; e não por ambos terem nascido no mesmo dia de Agosto) entregue por inteiro ao seu libretto, compassando as palavras num exorbitante allegro ma non troppo, recortando com finura o fluxo orquestral do pensamento que emanava pelo timbre genuíno da tua voz de barítono.

Sentia que o teu dizer, todo ele, se elevava à quinta-essência: gozavas da mesma arte absoluta de Fischer-Dieskau cantando os Lieder de Schubert – mas com a sublimação de um júbilo mozartiano. Um dia útil bastava para que as partituras se convertessem em espécies raras de pirilampos com o brilho de uma cisão nuclear. O raro, porém, ressoava em dons de outra escala: uma humildade desconcertante e uma regência desvelada dos afectos, a tua indelével constante gravítica. Em suma: um poeta-músico que amava ensaiar e ensinar, e que animava todos os sons da obra e da vida (sobretudo esta) com o segredo desse refrão tocado por mão própria: os afectos.

No entretanto, sobrevoavas a tempestade dos contrabaixos com a graça dos contrapontos e prosseguias, mãos dadas com Beethoven, a erguer cálices e cidades, a convocar abraços e festejos, a desenhar paisagens a perder de vista, sempre em modo maior. Atravessavas a música como um pássaro transparente. Desde que li esse verso teu, ainda longe das dissonâncias, que ele se projectou em ti. Fiquei a ver-te assim. Agora já não como mera efígie, mas descrevendo uma possibilidade perfeitamente real. O pássaro transparente que passa pela minha janela. Obrigado, meu bom amigo. Meu pássaro transparente.”.

Luís Carmelo doutorou-se com a obra La Représentation du Réel dans des Textes Prophétiques de la Littérature Aljamiado-Morisque (Universiteit Utrecht). Em 2003, fez provas de agregação na mesma área, posteriormente publicada enquanto Semiótica – Uma Introdução (2003). Campo que, segundo Nogueira, foi objeto privilegiado da sua ensaística: teorias da cultura e da comunicação, análise literária e imagem. Destaca-se A luz da intensidade. Figuração e estesia na literatura contemporânea. O caso de José Luís Peixoto (2012, Quetzal), Uma Infinita Voz – Sobre Exercícios de Humano de Paulo José Miranda (2016, Abysmo) ou A Tetralogia Lusitana de Almeida Faria (1989, Universidade de Utreque); Semiótica – Uma Introdução (2003, P. Europa-América), Ficcionalidades de Prata (2019, Nova Mymosa), Músicas da Consciência (2002, P. Europa-América) ou Água de Prata (2002, Casa do Sul); Anjos e Meteoros (1999, Editorial Notícias), Viragem Profética Contemporânea (2005, P. Europa-América), A Comunicação na Rede: o Caso dos Blogues (2008, Magna Editora), Órbitas da Modernidade (2003, Editorial Mareantes) ou Genealogias da Cultura (2013, Arranha Céus).

É também autor de manuais da área oficinal da escrita ficcional e poética e também de humor, publicidade e jornalismo. A recente trilogia, composta pelos romances Gnaisse (2015), Por Mão Própria (2016) e Sísifo (2017), assim como o livro Cálice (2020), foram editados pela Editora Abysmo. Rita Taborda Duarte dedica algumas linhas à trilogia na Revista Colóquio/Letras, escrevendo que

ao leitor resta a sensação de habitar uma casa por dentro, mas vendo-a também do lado de fora: uma experimentação de um símile de cubismo literário que permite, ao ler, viver a história a partir de vários ângulos em simultâneo”.

(2017, Nº196, p.245)

Exerceu docência no Instituto dos Trópicos e na Universidade Livre de Amesterdão, na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), na Universidade Aberta, no IADE, na ESTAL, no Âmbito Cultural ECI e no Camões, I.P.. Decidiu fundar, em 2008, a que é hoje conhecida como EC.ON – Escola de Escritas, em Évora, projeto independente no qual desenvolveu actividades literárias e culturais, entre as quais se destaca as sessões com escritores, os clubes de leitura e a edição de livros. Com afi(n)ado sentido de democratização, a EC.ON fez chegar a sua programação a públicos dos países onde se fala português, quer online, quer na partilha presencial em Lisboa. Primeiro em Sete Rios, depois na Rua do Possolo, mais tarde na Travessa do Possolo e, por fim, na Boutique da Cultura em Carnide. Andreia Azevedo Moreira recorda a primeira vez que frequentou a escola:

“Conheci o Luís Carmelo em 2015, na primeira sessão Ícone a que assisti. Falava o João Paulo Cotrim. Desde o primeiro instante, senti-me em casa. Vislumbre nenhum de constrangimento. Mais tarde, percebi que aquela casa não era feita das paredes que nos recebiam no Possolo. A casa era o Luís. Quem chegava permanecia, acolhido, sentindo a pertença. A última vez que conversámos, em Évora, foi no dia 22 de Abril 2023. Um sábado soalheiro ou assim o revisito, solar como ele. Várias pessoas que o amam assistiram, comovidas, à justíssima homenagem a uma vida literária de mais de 40 anos, ao Génio, ao Mestre, ao Escritor, ao Poeta, sobretudo, ao Amigo. Quando planeava não fazia de si o centro, arranjava forma de nos pôr a dançar de entusiasmo. O nosso Timoneiro, aberto, livre, agregador inato, editor ousado. No dia 29 ainda o vi mas ele já partira para novas Galáxias, expandindo-se, decerto, em novíssimas constelações. A 30 de Abril, as cordas vocais encantadoras pelo seu timbre grave, de pronúncia característica, arderam com o seu corpo terreno, todavia, o Luís não se calou. Agora, quando quero conversar com ele, tenho de me fazer mais atenta, aguda nos detalhes que me rodeiam. Revejo-o no desenho das nuvens, semelhantes às que pontuaram o céu na despedida, ouço-o no assobio do vento aos meus ouvidos, sinto-o na cor vibrante das buganvílias e na gata preta que ensaia um salto para o meu colo, a despropósito, de uma vedação num lugar remoto. Literariamente, aprendi muito com o Luís Carmelo. Encontro-sortilégio. A maior lição que guardo, no entanto, foi o modo como até aos últimos dias sobre o planeta ele encarou a existência: com o espanto, a vivacidade e o ímpeto inaugural do olhar de uma criança. Curioso ávido na sua relação com os outros. Alma-motriz da família EC.ON. Voz inigualável. Quando falha a fé e preciso de me certificar de que o Luís não morreu, quando fraquejo e necessito acreditar, de novo, que na verdade não o perdi, abro ao acaso um dos seus livros imensos. Leio nas suas palavras as respostas às perguntas com as quais me deixou, encontro perguntas novas e assim prossigo, acompanhada pelo seu espírito ímpar, na busca incessante que é estar viva”.

Foi cronista no Expresso (2005-2009), na RTP1 (2013) e no Hoje Macau (2018-2021). Recebeu o Prémio de Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, 1988, foi finalista de vários prémios (os mais recentes do Prémio Oceanos-2019, do Prémio Literário Casino da Póvoa / Correntes d´Escritas-2019 e do Prémio PEN Club 2021). O romance ‘A Falha’ (2002) foi adaptado ao cinema pelo realizador João Mário Grilo.

Em 2018, Luís Carmelo criou a editora Nova Mymosa, ligada ao projeto da EC.ON, na qual editou 78 livros assinados por 52 autores, entre os quais Nogueira destaca: Urbano Tavares Rodrigues, Mário de Carvalho, Helder Macedo, Nuno Júdice, Fernando Pinto do Amaral, Irene Flunser Pimentel, Maria do Rosário Pedreira, Alice Vieira, Margarida Fonseca Santos, Jaime Rocha, Álvaro Laborinho Lúcio, José Emílio-Nelson, João Paulo Cotrim, António Cabrita, Joana Bértholo, Bruno Vieira Amaral, Afonso Cruz, Ana Margarida de Carvalho, Rita Taborda Duarte, Filipa Martins, Matilde Campilho, Maria Quintans, Cláudia Lucas Chéu, Nelson Nunes, Isabel Rio Novo, Cristina Drios, Luís Quintais, Vasco Gato, José Anjos, Filipe Homem Fonseca, Miguel Martins, Francisca Camelo, Filipa Leal e José Mário Silva.

Na Nova Mymosa, também lançou obras iniciáticas (ou quase) de um conjunto de escritores emergentes, tais como Andreia Azevedo Moreira, Francisco Resende, Márcia Balsas, Marta Pais Oliveira, Frederico Van Zeller, Isabel Olivença, Ana Marques e Pedro Lamares. A escritora Mónia Camacho recorda o editor, com quem partiu para a amizade a média res:

“Como escreveu Luís Carmelo ‘Uma página em branco é uma miniatura de tudo o que não se sabe’. E foi dessa página em branco, desse tudo o que não se sabe, que partimos para a amizade. Uma partida à média res. Tal como a dele. Tivemos uma década para explorar mistérios. Literários e outros. O suficiente para admirar a sua intacta natureza poética e toda a abertura de pensamento que trazia a uma simples conversa. Espantando-me com a descoberta de um intelectual que está na vida e na literatura com a maior generosidade e delicadeza. Ainda estou a vê-lo, cheio de cuidados, dizendo-me, com cara de miúdo traquina a justificar-se à professora, que não podia ir ao lançamento do meu primeiro livro na Nova Mymosa, de que era o editor, pois que, afinal, nesse dia, estava, há muito, comprometido com o Benfica, lá para os lados da Luz e não se tinha apercebido… ri-me. Zanguei-me muito devagarinho. Afinal, essa sua abrangência agradava-me. E não era alheia às ideias que tinha, capazes de saltarem do baloiço para fora do canon. Com a mesma facilidade com que criava metáforas como a da buganvília que asfixiava o mundo, criava realidade. Fazia-a nascer para nós. E isso tinha qualquer coisa de mágico”.

Luís Carmelo foi recebido, em maio de 2022, por um Teatro A Barraca a transbordar de amigos e leitores para celebrar os 40 anos de vida literária com o lançamento simultâneo de uma narrativa biográfica (Visão Aproximada), um ensaio (Respiração Pensada) e um volume poético (Biografia do Mundo). A última vez que apareceu publicamente foi na Biblioteca Pública de Évora, cidade natal, enquanto autor homenageado da Feira do Livro de Évora 2023, numa sessão que contou com intervenções de Susana Ladeiro e Luís Osório. Para a sua mulher e companheira Isabel Bezelga, “O reconhecimento que tardava“.

Inventou e desenhou cidades, novos territórios a florir de sentido. Reinventou e redesenhou o cânone com a escuta do silêncio ensurdecedor. Com a música da gentileza, criou o milagre de ler o outro como o mundo. Uma família larga numa casa para sempre em construção: porque a altura da casa é proporcional à lonjura dos braços. Mais braços, mais cidadania cultural, que se sonha e se faz acontecer. Sedimento a sedimento, de partilha em partilha, uma pátria dentro da pátria. Uma pátria de resistência em liberdade para reescrever a realidade na oficina de um amor maior. A pairar sobre o escuro, feixes de luz elétrica velocíssima, inaugural.

Fotografia: Vitorino Coragem

José Oliveira Pinto com Andreia Azevedo Moreira, Francisco Resende, João Nogueira e Mónia Camacho

Citações (texto de Francisco Resende)
“[Um comboio em andamento a derivar] entre o sonho e a possibilidade” – CARMELO, Luís. Cálice, Abysmo, 2020, p. 15.
“Durante esse tempo ínfimo que não parecia ter fim” – CARMELO, Luís. Cálice, Abysmo, 2020, p. 14.
“Pássaro transparente” – CARMELO, Luís. O Pássaro Transparente, Nova Mymosa, 2020.
Agradecimento à Isabel Bezelga

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